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HETERONÍMIA PESSOANA. Alberto Caeiro Ricardo Reis Álvaro de Campos Bernardo Soares Maria José. “Sou a cena viva onde passam vários actores representando várias peças.” Bernardo Soares.
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HETERONÍMIAPESSOANA Alberto Caeiro Ricardo Reis Álvaro de Campos Bernardo Soares Maria José “Sou a cena viva onde passam vários actores representando várias peças.” Bernardo Soares Através dos heterónimos, Pessoa conduziu uma profunda reflexão sobre a relação entre verdade, existência e identidade.
EXPRESSÃO DO HOMEM Tudo quanto o homem expõe ou exprime é uma nota à margem de um texto apagado de todo. Mais ou menos, pelo sentido da nota, tiramos o sentido que havia de ser o do texto; mas fica sempre uma dúvida, e os sentidos possíveis são muitos. Bernardo Soares, Livro do Desassossego
TENDÊNCIA PARA A DESPERSONALIZAÇÃO Fernando Pessoa: - tendência orgânica e constante para a despersonalização; - começou desde muito cedo a criar em seu redor um mundo fictício, cercando-se de amigos e conhecidos que nunca existiram; - proliferação de máscaras, disfarces, de duplos, de outros eus, que são simultaneamente o mesmo e o outro simples mistificação literária?NECESSIDADE - Pessoa possui uma capacidade genial de criar autores, cada um com a sua personalidade própria, a sua biografia, a sua estética, o seu estilo e o seu modo de pensar. - os EUS criados possuem - identidade inconfundível - filosofia por vezes antagónica da professada pelo poeta ortónimo. Pessoa inventa constantemente outro para ter a ilusão de se ver de fora do seu dentro. “Se Deus não tem unidade, como a terei eu?” F. Pessoa
Excertos de Carta a João Gaspar Simões (11 de Dezembro de 1931) Nunca senti saudades da infância; nunca senti, em verdade, saudades de nada. Sou, por índole, e no sentido directo da palavra, futurista. Não sei ter pessimismo, nem olhar para trás. Que eu saiba ou repare, só a falta de dinheiro (no próprio momento) ou um tempo de trovoada (enquanto dura) são capazes de me deprimir. Tenho, do passado, somente saudades de pessoas idas, a quem amei; mas não é a saudade do tempo em que as amei, mas a saudade delas: queria‑as vivas hoje, e com a idade que hoje tivessem, se até hoje tivessem vivido. O mais são atitudes literárias, sentidas intensamente por instinto dramático, quer as assine Álvaro de Campos, quer as assine Fernando Pessoa. São suficientemente representadas, no tom e na verdade, por aquele meu breve poema que começa: “Ó sino da minha aldeia…”. O sino da minha aldeia, Gaspar Simões, é o da Igreja dos Mártires, ali no Chiado. A aldeia em que nasci foi o Largo de S. Carlos, hoje do Directório, e a casa em que nasci foi aquela onde mais tarde (no segundo andar; eu nasci no quarto) haveria de instalar‑se o Directório Republicano. (Nota: a casa estava condenada a ser notável, mas oxalá o 4.º andar dê melhor resultado que o 2.º.)
Excertos de Carta a João Gaspar Simões (11 de Dezembro de 1931) - cont. […] O ponto central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho, continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo. Voo outro – eis tudo. Do ponto de vista humano (…) sou um histero‑neurasténicocom a predominância do elemento histérico na emoção e do elemento neurasténico na inteligência e na vontade (minuciosidade de uma, tibieza de outra). Desde que o crítico fixe, porém, que sou essencialmente poeta dramático, tem a chave da minha personalidade (…). Munido desta chave, ele pode abrir lentamente todas as fechaduras da minha expressão. Sabe que, … como poeta, sinto; que como poeta dramático, sinto despegando‑me de mim; que, como dramático (sem poeta), transmudo automaticamente o que sinto para uma expressão alheia ao que senti, construindo na emoção uma pessoa inexistente que a sentisse verdadeiramente, e por isso sentisse, em derivação, outras emoções que eu, puramente eu, me esqueci de sentir. InCorrespondência: 1923‑1935. Ed. Manuela Parreira da Silva. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999. p. 254.
Excerto de Carta a Adolfo Casais Monteiro (20 de Janeiro de 1935) O que sou essencialmente – por trás das máscarasinvoluntárias do poeta, do raciocinador e do que mais haja – é dramaturgo. O fenómeno da minha despersonalização instintiva, a que aludi em minha carta anterior, para explicação da existência dos heterónimos, conduz naturalmente a essa definição. Sendo assim, não evoluo: VIAJO. (Por um lapso da tecla das maiúsculas, saiu‑me sem que eu quisesse essa palavra em letra grande. Está certo, e assim deixo ficar.) Vou mudando de personalidade, vou (aqui é que pode haver evolução) enriquecendo‑me na capacidade de criar personalidades novas, novos tipos de fingir que compreendo o mundo, ou, antes, de fingir que se pode compreendê‑lo. Por isso dei essa marcha em mim como comparável, não a uma evolução, mas a uma viagem: não subi de um andar para outro, segui, em planície, de um para outro lugar (“Viajar, perder países”). Fernando Pessoa
Álvaro de Campos vs Moonspell http://www.tanto.com.br/fernandopessoa-opiario.htm Álvaro de Campos OpiárioAo Senhor Mário de Sá-Carneiro É antes do ópio que a minh'alma é doente. Sentir a vida convalesce e estiola E eu vou buscar ao ópio que consola Um Oriente ao oriente do Oriente. Esta vida de bordo há-de matar-me. São dias só de febre na cabeça E, por mais que procure até que adoeça, já não encontro a mola pra adaptar-me. (…) Eu acho que não vale a pena ter Ido ao Oriente e visto a índia e a China. A terra é semelhante e pequenina E há só uma maneira de viver. Por isso eu tomo ópio. É um remédio Sou um convalescente do Momento. Moro no rés-do-chão do pensamento E ver passar a Vida faz-me tédio. (…) Moonspell ÓpioÓpio, desejo ou vontade?Inspiração tirada de uma semente formosaSubversão, através da fumaça, prevejoMovimentos eróticos de deuses menores em êxtaseÓpio, ofereça-me outro sonhoCrie mundos de carne e carmim,Pequenas jóias de atrocidadeÓpio, eu durmo numa bacanáliaE ardo com vocêQuando você queima em mimÓpio, nós deliramosQuando nos fundimos com sua raizVocê é uma flor estranha,Somos seu fruto estranho.Ópio, queima você e a mimÓpio, queima por você e por mim"Por isso eu tomo ópio, é um remédio.Sou um convalescente do Momento.Moro no rés- do -chão do pensamentoE ver passar a vida faz-me tédio“.
HETERONÍMIA – BERNARDO SOARES Bernardo Soares É o grau zero da heteronímia B. Soares é um ajudante de guarda-livros que Pessoa encontra de quando em vez em modestos restaurantes ou casas de pasto da Baixa Lisboeta. Tem trinta anos, é magro, mais alto que baixo, curvado exageradamente quando sentado. Veste-se com um certo desleixo não inteiramente desleixado.
HETERONÍMIA – BERNARDO SOARES - A prosa de B. Soares é um constante devaneio e aparece sempre que Fernando Pessoa se encontra, diz ele, “cansado ou sonolento”. - O Livro do Desassossego pode ler-se como uma obra de ficção através da qual se exprime um pouco, não o todo, de F. Pessoa. - Encontra-se na linha da tradição dos livros europeus de carácter confessional, distinguindo-se, contudo, nitidamente destes. - B. Soares é uma personagem literária que revela F. Pessoa num certo registo. - Através de B. Soares, Pessoa confessa, revela, uma parte do seu ser, a do seu quotidiano banal como correspondente comercial. “O mundo exterior existe como um actor num palco: está lá mas é outra coisa.” Livro do Desassossego
BERNARDO SOARES – excertos do Livro do Desassossego Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie – nem sequer mental ou de sonho –, transmudou‑se‑me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem‑me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida. Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer‑se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando‑se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.
BERNARDO SOARES – excertos do Livro do Desassossego Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro‑me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. “Fabricou Salomão um palácio…” E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso; depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais – tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda choro. Não é – não – a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica. Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse. Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco‑romana veste‑ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha. InLivro do Desassossego - Bernardo Soares. Ed.RichardZenith. Lisboa: Assírio & Alvim, 1998. p. 255
BERNARDO SOARES – excertos do Livro do Desassossego Cada vez que viajo, viajo imenso. O cansaço que trago comigo de uma viagem de comboio até Cascais é como se fosse o de ter, nesse pouco tempo, percorrido as paisagens de campo e cidade de quatro ou cinco países. Cada casa por que passo, cada chalé, cada casita isolada caiada de branco e de silêncio – em cada uma delas num momento me concebo vivendo, primeiro feliz, depois tediento, cansado depois; e sinto que tendo‑a abandonado, trago comigo uma saudade enorme do tempo em que lá vivi. De modo que todas as minhas viagens são uma colheita dolorosa e feliz de grandes alegrias, de tédios enormes, de inúmeras falsas saudades. Depois, ao passar diante de casas, de vilas, de chalés, vou vivendo em mim todas as vidas das criaturas que ali estão. Vivo todas aquelas vidas domésticas ao mesmo tempo. Sou o pai, a mãe, os filhos, os primos, a criada e o primo da criada, ao mesmo tempo e tudo junto, pela arte especial que tenho de sentir ao mesmo [tempo] várias sensações diversas, de viver ao mesmo tempo – e ao mesmo tempo por fora, vendo‑as, e por dentro sentindo‑mas – as vidas de várias criaturas. Criei em mim várias personalidades. Crio personalidades constantemente. Cada sonho meu é imediatamente, logo ao aparecer sonhado, encarnado numa outra pessoa, que passa a sonhá‑lo, e eu não. Para criar, destruí‑me; tanto me exteriorizei dentro de mim, que dentro de mim não existo senão exteriormente. Sou a cena viva onde passam vários actores representando várias peças. InLivro do Desassossego. Ed.RichardZenith. Lisboa: Assírio & Alvim, 1998. p. 283
PESSOA: O POETA DOS 4 ELEMENTOS • Puzzle: 4 ELEMENTOS - Dramatização da génese heteronímica - Leitura de informação acerca da heteronímia pessoana - Os 4 elementos associados ao ortónimo e a cada um dos heterónimos: Fogo, Terra, Ar, Água. - Discussão em grupo para chegar a razões possíveis para esta atribuição.
PESSOA: O POETA DOS 4 ELEMENTOS Fernando Pessoa – iniciado FOGO - Tensão entre sinceridade/fingimento, consciência/inconsciência, sentir/pensar; - Fingimento artístico; - Recurso ao símbolo; - Nostalgia da infância. Constantes da temática de F. Pessoa - Cepticismo e idealismo; - Consciência e personalidade; - A dor de pensar; - Melancolia e tédio.
ALBERTO CAEIRO – o poeta metáfora da Natureza (pastor) TERRA - Homem “loiro, sem cor, de olhos azuis”, que passa o tempo a ver o mundo e as coisas. Apelida-se metaforicamente de pastor. - Tem alma de pastor e, como todos os tipos primários, só conhece as coisas presentes aos sentidos (sensacionismo). - Os seus conhecimentos literários e científicos não vão além da instrução primária. - É ingénuo, aberto, expansivo, natural e está satisfeito com o mundo onde vive. - Sem profissão, nem educação, morre de tuberculose na flor da idade. - Poemas passivistas, imanentistas, não concedendo aos homens senão o dever de serem, em igualdade com as coisas, as plantas e os bichos, irmãos numa natureza sem conteúdo metafísico e sem dimensão teológica (panteísmo/paganismo). - Inimigo do abstracto, para ele as coisas não têm alma, nem beleza (antimetafísica). - A sua metafísica reduz-se a “não pensar”. Não sabe pensar; ou melhor; pensa vendo. - Para ele não há passado nem futuro; há o presente ou talvez a intemporalidade. É todo sentidos. Só conhece o sensível geograficamente e temporalmente unido a si.
ALBERTO CAEIRO - 1889 – 1915 – biografia / perfil poético Fernando Pessoa explicou a “vida” de cada um de seus heterónimos. O mestre de todos, Alberto Caeiro: • "Nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão, nem educação quase alguma, só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia avó. Morreu tuberculoso." • Pessoa cria uma biografia para Caeiro que se encaixa com perfeição à sua poesia, como podemos observar nos 49 poemas da série O Guardador de Rebanhos, incluída por inteiro nesta antologia. Segundo Pessoa, foram escritos na noite de 8 de Março de 1914, de um só fôlego, sem interrupções. Esse processo criativo espontâneo traduz exactamente a busca fundamental de Alberto Caeiro: completa naturalidade. “Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é.Mas porque a amo, e amo-a por isso,Porque quem ama nunca sabe o que amaNem por que ama, nem o que é amar...”
ALBERTO CAEIRO - 1889 – 1915 – biografia / perfil poético • Caeiro escreve com a linguagem simples e o vocabulário limitado de um poeta camponês pouco ilustrado. Pratica o realismo sensorial, numa atitude de rejeição às elucubrações da poesia simbolista. • Assim, constantemente opõe à metafísica o desejo de não pensar. Faz da oposição à reflexão a matéria básica das suas reflexões. Esse paradoxo aproxima-o da atitude zen-budista de pensar para não pensar, desejar não desejar: “Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?A de serem verdes e copadas e de terem ramosE a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,A nós, que não sabemos dar por elas.Mas que melhor metafísica que a delas,Que é a de não saber para que vivemNem saber que o não sabem?” 12º 1A2
ALBERTO CAEIRO – biografia / perfil poético • Caeiro coloca-se, portanto, como inimigo do misticismo, que pretende ver “mistérios” por trás de todas as coisas. Busca precisamente o contrário: ver as coisas como elas são, sem reflectir sobre elas e sem atribuir a elas significados ou sentimentos humanos: “Os poetas místicos são filósofos doentes,E os filósofos são homens doidos. Porque os poetas místicos dizem que as flores sentemE dizem que as pedras têm almaE que os rios têm êxtases ao luar. Mas as flores, se sentissem, não eram flores,Eram gente;E se as pedras tivessem alma, eram coisas vivas, não eram pedras;E se os rios tivessem êxtases ao luar,Os rios seriam homens doentes.”
ALBERTO CAEIRO – biografia / perfil poético • Os poetas simbolistas, que antecederam Fernando Pessoa, estavam impregnados de forte misticismo, herdado da poesia romântica. Enquanto românticos e simbolistas carregavam seus poemas de religiosidade. Alberto Caeiro procura, de forma coerente e lógica, afastar-se da reflexão sobre Deus. “Pensar em Deus é desobedecer a Deus,Porque Deus quis que o não conhecêssemos,Por isso se nos não mostrou...” • Caeiro escreve um poema muito ousado sobre o menino Jesus. No poema VIII de O Guardador de Rebanhos, destituído de santidade, Cristo é representado como uma criança normal: espontânea, levada, brincalhona e alegre. Nisso, está a religiosidade de Caeiro. http://www.youtube.com/watch?v=HakV--x6LXM • Em perfeita consonância com sua busca de simplicidade e espontaneidade, Alberto Caeiro escreve versos livres (sem métrica regular) e brancos (sem rimas).
A. Caeiro – ARTE POÉTICA A apologia da espontaneidade e da naturalidade XXXVI - Há Poetas Que São Artistas E há poetas que são artistas E trabalham nos seus versos Como um carpinteiro nas tábuas!... Que triste não saber florir! Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro E ver se está bem, e tirar se não está!... Quando a única casa artística é a Terra toda Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma. Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira, E olho para as flores e sorrio... Não sei se elas me compreendem Nem sei eu as compreendo a elas, Mas sei que a verdade está nelas e em mim E na nossa comum divindade De nos deixarmos ir e viver pela Terra E levar ao solo pelas Estações contentes E deixar que o vento cante para adormecermosE não termos sonhos no nosso sono. Recusa do pensamento Valorização da Natureza Condenação da arte como construção reflectida
A. Caeiro – código da anti-metafísica Há metafísica bastante em não pensar em nada O que penso eu do mundo? Sei lá o que penso do mundo! Se eu adoecesse pensaria nisso. Que ideia tenho eu das cousas?Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?Que tenho eu meditado sobre Deus e a almaE sobre a criação do Mundo? Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos E não pensar. É correr as cortinasDa minha janela (mas ela não tem cortinas). O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!O único mistério é haver quem pense no mistério.Quem está ao sol e fecha os olhos,Começa a não saber o que é o solE a pensar muitas cousas cheias de calor. Mas abre os olhos e vê o sol,E já não pode pensar em nada,Porque a luz do sol vale mais que os pensamentosDe todos os filósofos e de todos os poetas.A luz do sol não sabe o que fazE por isso não erra e é comum e boa. Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?A de serem verdes e copadas e de terem ramosE a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar, A nós, que não sabemos dar por elas.Mas que melhor metafísica que a delas,Que é a de não saber para que vivemNem saber que o não sabem? (…) Mas se Deus é as árvores e as flores E os montes e o luar e o sol,Para que lhe chamo eu Deus?Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar; Porque, se ele se fez, para eu o ver,Sol e luar e flores e árvores e montes,Se ele me aparece como sendo árvores e montesE luar e sol e flores,É que ele quer que eu o conheçaComo árvores e montes e flores e luar e sol. E por isso eu obedeço-lhe, (Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?). Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,Como quem abre os olhos e vê,E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,E amo-o sem pensar nele,E penso-o vendo e ouvindo,E ando com ele a toda a hora.
Sensacionismo: CAEIRO/CAMPOS Sensacionismo objectivo vs Sensacionismo subjectivo • Influenciado por Cesário Verde, Walt Whitman, Verhaeren e Marinetti, Pessoa criou, pela voz dos heterónimos Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, vários textos inseridos na corrente do Sensacionismo que afirma a “primordialidade da sensação” que “tem de ser intelectualizada”. É, no entanto, um sensacionismo de cariz diferente que encontramos nos dois heterónimos. • Para Caeiro, a sensação das coisas deve ser entendida como tal, sem acréscimo de elementos do pensamento ou sentimento pessoais. • Para Campos, e tal como afirma Pessoa em Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, “a sensação é tudo, sim, mas não necessariamente a sensação das coisas como são, antes das coisas conforme sentidas. De modo que vê a sensação subjectivamente”.
Sensacionismo: CAEIRO/CESÁRIO • Os versos Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca • são a expressão mais radical do materialismo concretista de Caeiro; • Reflectem uma certa intertextualidade com estes versos de Cesário Verde: Lavo, refresco, limpo os meus sentidos. E tangem-me excitados, sacudidos, O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto. Num Bairro Moderno • Ambos os poetas puseram ênfase na importância das sensações, mas… Caeiro excluiu, ao contrário de Cesário, o papel da inteligência-imaginação na elaboração dos poemas; para Caeiro, o limite da sensação é a própria sensação.
Sensacionismo: CAEIRO/CESÁRIO • A realidade e a felicidade estão nas sensações Alberto Caeiro Sinto o meu corpo deitado na realidade, Sei a verdade e sou feliz Cesário Verde Eu tudo encontro alegremente exacto • É muito natural perspectivar a influência que Cesário teve em Caeiro. • A admiração do heterónimo está evidente nos versos que lhe dedica: Ele era um camponês Que andava preso em liberdade pela cidade.
Caeiro - conclusão LAST POEM (ditado pelo poeta no dia da sua morte) É talvez o último dia da minha vida. Saudei o Sol, levantando a mão direita, Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus, Fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada. Poemas Inconjuntos, XVI Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, Não há nada mais simples. Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra coisa todos os dias são meus. Sou fácil de definir. Vi como um danado. Amei as coisas sem sentimentalidade nenhuma. (…) Um dia deu-me o sono como a qualquer criança. Fechei os olhos e dormi. Além disso, fui o único poeta da Natureza.
Ricardo Reis escreve sobre Caeiro “A obra, porém, e o seu paganismo, não foram nem pensados nem até sentidos: foram vividos com o que quer que seja que é em nós mais profundo que o sentimento ou a razão. Dizer mais fora explicar, o que de nada serve; afirmar menos fora mentir. Toda a obra fala por si, com a voz que lhe é própria, e naquela linguagem em que se forma na mente; quem não entende não pode entender, e não há pois que explicar-lhe. É como fazer compreender a alguém espaçando as palavras, um idioma que ele não fala.” Compreendi que as coisas são reais e todas diferentes umas das outras; Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento. Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais. (Poemas Inconjuntos, XVI) Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto… (Athena, nº 5, Fev. 1925)
A. Caeiro – exercício de revisão de conhecimentos Assinala as afirmações correctas
EXERCÍCIO DE EXPRESSÃO ESCRITA: TEXTO EXPOSITIVO-ARGUMENTATIVO "Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei” A. Caeiro Partindo do verso transcrito e das constantes temáticas da poesia de Caeiro, redige um texto expositivo-argumentativo onde abordes a relação deste heterónimo pessoano com o mundo (cem a duzentas palavras). O texto expositivo-argumentativo 1. A Teoria - O texto expositivo-argumentativo consiste em partir de uma afirmação e desenvolvê-la. - Tem como objectivo apresentar um juízo próprio de forma clara e organizada. - A clareza do texto expositivo-argumentativo depende, em muito, da forma como ele é estruturado. - Assim, o texto deverá ser organizado em três partes: introdução, desenvolvimento e conclusão. - Para melhor levares à prática estas indicações, atenta nos seguintes conselhos práticos: • A introdução e a conclusão: – devem ser constituídas por um único parágrafo; – uma vez que são sínteses teóricas, não devem conter exemplos; – articulam-se entre si, já que a conclusão deve retomar a introdução. • O desenvolvimento: – articula-se com a introdução; – integra referências concretas à obra do autor, recorrendo a citações de excertos e/ou títulos; – veicula juízos próprios apoiados em referências textuais.
EXERCÍCIO DE EXPRESSÃO ESCRITA: TEXTO EXPOSITIVO-ARGUMENTATIVO Nota ainda que: – deves ler atentamente o enunciado de forma a compreenderes claramente a tese aí formulada; – antes de redigires o teu texto, deves organizar a informação em forma de tópicos ou de esquema; – durante a redacção, deves… - identificar o tipo de relações lógicas existentes entre cada uma das três partes do texto; - identificar a relação entre as ideias que vais expor no desenvolvimento; - seleccionar os articuladores do discurso que vão evidenciar esses nexos. – convencionalmente, o tempo utilizado neste tipo de texto é o presente do indicativo; – não podes fugir ao limite de palavras indicado. 2. Mecanismos de coesão do texto (conectores/articuladores do discurso) Como aprendeste em anos anteriores, os articuladores do discurso são conectores utilizados para fazer a ligação entre frases, das frases num período, dos períodos dentro dos parágrafos e dos parágrafos no texto. Do seu bom uso resulta uma maior coesão do texto. Os conectores pertencem a diversas subclasses de palavras: podem ser conjunções, advérbios, locuções adverbiais; podem, até, ser orações inteiras.
RICARDO REIS - 1889 - 1915 (o epicurista triste) AR - Médico expatriado, desde 1919 no Brasil, por motivos políticos, de quem se perdeu o rasto, apesar de algumas notícias recentes, obviamente apócrifas. - Monárquico, educado num colégio de jesuítas, “pagão por carácter”, latinista e semi-helenista, evidencia um espírito grave, medido, ansioso de perfeição. Temáticas: - Teoria filosófica ou gnóstica; - Epicurismo e estoicismo; - Neopaganismo e neoclassicismo; - Efemeridade da vida e do tempo; - Intelectualização das emoções. http://www.youtube.com/watch?v=ufAIn4xEt4c
“Ricardo Reis nasceu no Porto. Educado em colégio de jesuítas, é médico e vive no Brasil desde 1919, pois expatriou-se espontaneamente por ser monárquico. É latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria.“F. Pessoa CAEIRO REIS Discípulo de Caeiro; É um erudito que insistia na defesa dos valores tradicionais, tanto na literatura quanto na política; - retoma o fascínio do mestre pela natureza pelo viés do neoclassicismo; - Insiste nos clichês árcades do LocusAmoenus(local ameno) e do Carpe Diem(aproveitar o momento); Linguagem clássica; Usa um vocabulário erudito; poemas metrificados e que apresentam uma sintaxe rebuscada. • Um camponês autodidata, desprovido de erudição;
CAEIRO REIS Os poemas de Reis são odes (poemas líricos de tom alegre e entusiástico, cantados pelos gregos, ao som de cítaras ou flautas, em estrofes regulares e variáveis) Nelas, convida pastoras como Lídia, Neera ou Cloe para desfrutar de prazeres contemplativos e regrados: "Prazer, mas devagar,Lídia, que a sorte àqueles não é grata Que lhe das mãos arrancam. Furtivos, retiremos do horto mundo Os deprendandospomos.“; as odes de Reis recorrem sempre aos deuses da mitologia grega (Píndaro); paganismo de carácter erudito; os deuses estão acima de tudo e controlam o destino dos homens: "Acima da verdade estão os deuses.Nossa ciência é uma falhada cópiaDa certeza com que eles Sabem que há o Universo.” • convicção de que não se deve pensar em Deus.
ÁLVARO DE CAMPOS - 1890 - 1935 (o filho indisciplinado da sensação) ÁGUA - Engenheiro naval formado em Glasgow. - Dirige-se ao futuro e é o homem da técnica. - Vitalismo, energetismo e sensacionismo. - Poeta sensacionistae escandaloso, engenheiro de profissão, de aspecto “civilizado e franzino”, monóculo e casaco exageradamente justo. É um homem da indústria e da técnica. Temática e sua evolução: • 1ª fase: decadentista Opiário – 03/1914 • 2ª fase: do futurismo whitmaniano Ode Triunfal - 04/1914 até 1916 • 3ª fase: pessoal ou independente Tabacaria -desconsolado e melancólico - até 1935
ÁLVARO DE CAMPOS – biografia / perfil poético • Fernando Pessoa informa-nos que Álvaro de Campos: “Nasceu em Tavira, teve uma educação vulgar de Liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Agora está aqui em Lisboa em inactividade." (cartas de F. Pessoa) - Álvaro de Campos apresenta três fases distintas em sua poesia - Influências: »1ª fase - Decadentismo simbolista; » 2ª fase - FuturismoWhitmaniano; » 3ª fase – (dita Intimista ou Independente).
ÁLVARO DE CAMPOS – biografia / perfil poético 1ª fase (Decadentista) durou até 1920 • No poema Opiário, o engenheiro Campos, influenciado pelo simbolismo, ainda metrifica e rima. Escreve quadras, estrofes de quatro versos, de teor autobiográfico e já se apresenta amargurado e insatisfeito: "Eu fingi que estudei engenharia. Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda. Meu coração é uma avozinha que anda Pedindo esmolas às portas da alegria.“; • Sujeito cansado de uma civilização velha que todos reconhecem; • Cheio de tédio e à procura de sensações novas, extravagantes e mórbidas; • Opiário revela um Campos… - enjoado da vida; - destruído interiormente; - procura evadir-se através do ópio, da morfina; - cheio de tristeza marginaliza-se e vê que só lhe resta «fumar a vida».
ÁLVARO DE CAMPOS – biografia / perfil poético 2ª fase (Futurismo Whitmaniano) vai de 1914 a 1916 • Campos envereda pelo futurismo, adoptando um estilo febril, entre as máquinas e a agitação da cidade, do que resultam poemas como Ode Triunfal: "À dolorosa luz das lâmpadas eléctricas da fábricaTenho febre e escrevo.Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos." • Outros poemas: Ode Marítima, a Saudação a Walt Whitmane “Passagem das Horas. • Homenageando o grande escritor norte-americano, Campos, além de se referir ao conhecido homossexualismo de Whitman, de que parece comungar, revela uma das mais fortes influências sobre o seu estilo. • Idealização poética industrial, dominada pelo dinâmico, pelo forte e não pelo belo, como Aristóteles. • Viu o contributo da civilização industrial para o bem e para o mal.
ÁLVARO DE CAMPOS – biografia / perfil poético • De Whitman Campos terá recebido influência no estilo e nos temas. TEMAS MAIS FREQUENTES - o amor pela vida; - a solidariedade entre os homens (do santo à prostituta, do salteador ao burguês); - o tumulto das viagens marítimas; - a energia mecânica; - o progresso técnico; - a epopeia do quotidiano; - o cosmopolitismo civilizado: redimensiona e liberta o Homem.
ÁLVARO DE CAMPOS – biografia / perfil poético 3ª fase (Intimista) vai de 1916 a 1935 • Fase em que pontifica o poema Tabacaria • Apresenta um poeta amargurado, reflectindo de forma pessimista e desiludida sobre a existência: "Não sou nada.Nunca serei nada.Não posso querer ser nada.À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo." • Confessa-se discípulo de Alberto Caeiro (como Ricardo Reis) Mas… - Reis envereda pelo neoclassicismo ao tentar imitar o mestre, - Campos revela-se inquieto e frustrado por não conseguir seguir os preceitos de Caeiro. • No poema que se inicia pelo verso "Mestre, meu mestre querido", o sujeito dialoga com Caeiro, revelando toda sua angústia: "Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.Meu coração não aprendeu nada. (...)A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação."
ÁLVARO DE CAMPOS – biografia / perfil poético ESTILO • Os poemas de Álvaro de Campos são… - marcados pela oralidade e pela prolixidade que se espalha em versos longos, próximos da prosa. - Despreza a rima ou métrica regular. - despeja os seus versos em torrentes de incontrolável desabafo. “Sentir tudo de todas as maneiras. Viver tudo de todos os lados. Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo.” “Sentir tudo de todas as maneiras. Ter todas as opiniões. Ser sincero contradizendo-se a cada minuto.” Ode Triunfal
ÁLVARO DE CAMPOS - poemas Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra, Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra, Ao luar e ao sonho, na estrada deserta, Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça, Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo, Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter, Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir? Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa, Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa. Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência, Sempre, sempre, sempre, Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma, Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida... Maleável aos meus movimentos subconscientes no volante, Galga sob mim comigo, o automóvel que me emprestaram. Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
ÁLVARO DE CAMPOS - poemas Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo! Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas! Quanto que me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou! À esquerda o casebre – sim, o casebre – à beira da estrada. À direita o campo aberto, com a lua ao longe. O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade, É agora uma coisa onde estou fechado, Que só posso conduzir se nele estiver fechado, Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim. À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto. A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha. Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz. Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
ÁLVARO DE CAMPOS - poemas Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha No pavimento térreo, Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga, E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi. Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa? Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio? Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite, Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente, Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço, E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível, Acelero...
ÁLVARO DE CAMPOS - poemas Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo, À porta do casebre, O meu coração vazio, O meu coração insatisfeito, O meu coração mais humano do que eu, mais exacto que a vida. Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante, Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação, Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra, Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim...
Relação entre os 3 heterónimosSER . VIVER . SENTIR Assim, nos heterónimos pessoanos, encontramos a síntese da arte… …de SER, de SENTIR e de VIVER.
MARIA JOSÉ, a corcunda CARTA AO SERRALHEIRO
MARIA JOSÉ: Carta da Corcunda Para o Serralheiro Senhor Antonio: O senhor nunca ha de ver esta carta, nem eu hei de ver segunda vez porque estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo abafo. O senhor não sabe quem eu sou, isto é, sabe mas não sabe a valer. Tem-me visto á janella quando o senhor passa para a officina e eu olho para si, porque o espero a chegar, e sei a hora que o senhor chega. Deve sempre ter pensado sem importancia na corcunda do primeiro andar da casa amarella, mas eu não penso senão em si. Sei que o senhor tem uma amante, que é aquella rapariga loura alta e bonita; eu tenho inveja d’ella mas não tenho ciumes de si porque não tenho direito a ter nada, nem mesmo ciumes. Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio, e poder ir á rua e fallarcomsigo ainda que o senhor me não desse razão de nada, mas eu estimava conhecel-o de fallar. O senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e eu estou-lhe agradecida sem que o senhor o saiba. Eu nunca poderia ter ninguem que gostasse de mim como se gosta das pessoas que teem o corpo de que se pode gostar, mas eu tenho o direito de gostar sem que gostem de mim, e tambem tenho o direito de chorar, que não se negue a ninguem. Eu gostava de morrer depois de lhe fallar a primeira vez mas nunca terei coragem nem maneiras de lhe fallar. Gostava que o senhor soubesse que eu gostava muito de si, mas tenho medo que se o senhor soubesse não se importasse nada, e eu tenho pena já de saber que isso é absolutamente certo antes de saber qualquer coisa, que eu mesma não vou procurar saber.
continuação Eu sou corcunda desde a nascença e sempre riram de mim. Dizem que todas as corcundas são más, mas eu nunca quiz mal a ninguem. Alem d’isso sou doente, e nunca tive alma, por causa da doença, para ter grandes raivas. Tenho dezanove annos e nunca sei para que é que cheguei a ter tanta edade, e doente, e sem ninguem que tivesse pena de mim a não ser por eu ser corcunda, que é o menos, porque é a alma que me doe, e não o corpo, pois a corcunda não faz dor. Eu até gostava de saber como é a sua vida com a sua amiga, porque como é uma vida que eu nunca posso ter – e agora menos que nem vida tenho – gostava de saber tudo. Desculpe escrever-lhe tanto sem o conhecer, mas o senhor não vae ler isto, e mesmo que lesse nem sabia que era consigo e não ligava importancia em qualquer caso, mas gostaria que pensasse que é triste ser marreca e viver sempre só á janella, e ter mãe e irmãs que gostam da gente mas sem ninguem que goste de nós, porque tudo isso é natural e é a familia, e o que faltava é que nem isso houvesse para uma boneca com os ossos ás avessas como eu sou, como eu já ouvi dizer. Houve um dia que o senhor vinha para a officina e um gato se pegou á pancada com um cão aqui defronte da janella, e todos estivemos a ver, e o senhor parou, na esquina do barbeiro, e depois olhou para mim para a janella, e viu-me a rir e riu tambem para mim, e essa foi a unica vez que o senhor esteve a sós commigo, por assim dizer, que isso nunca poderia eu esperar. Tantas vezes, o senhor não imagina, andei á espera que houvesse outra coisa qualquer na rua quando o senhor passasse e eu pudesse outra vez ver o senhor a ver e talvez olhasse para mim e eu pudesse olhar para si e ver os seus olhos direito para os meus.
continuação Mas eu não consigo nada do que quero, nasci já assim, e até tenho que estar em cima de um estrado para poder estar á altura da janella. Passo todo o dia a ver illustrações e revistas de modas que emprestam á minha mãe, e estou sempre a pensar noutra coisa, tanto que quando me perguntam como era aquella saia ou quem é que estava no retrato onde está a Rainha de Inglaterra, eu ás vezes me envergonha de não saber, porque estive a ver coisas que não podem ser e que eu não posso deixar que me entrem na cabeça e me dêem alegria para eu depois ainda por cima ter vontade de chorar. Depois todos me desculpam, e acham que sou tonta, mas não me julgam parva, porque ninguem julga isso, e eu chego a não ter pena da desculpa, porque assim não tenho que explicar porque é que estive distrahida. Ainda me lembro d’aquelle dia que o senhor passou aqui ao Domingo com o fato azul claro. Não era azul claro, mas era uma sarja muito clara para o azul escuro que costuma ser. O senhor ia que parecia o proprio dia que estava lindo e eu nunca tive tanta inveja de toda a gente como nesse dia. Mas não tive inveja da sua amiga, a não ser que o senhor não fosse ter com ella mas com outra qualquer, porque eu não pensei senão em si, e foi por isso que invejei toda a gente, o que não percebo mas o certo é que é verdade. Não é por ser corcunda que estou aqui sempre á janella, mas é que ainda por cima tenho uma especie de rheumatismo nas pernas e não me posso mexer, e assim estou como se fosse paralytica, o que é uma maçada para todos cá em casa e eu sinto ter que ser toda a gente a aturar-me e a ter que me acceitar que o senhor não imagina.
continuação Eu ás vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janella abaixo, mas eu que figura teria a cahir da janella? Até quem me visse cahir ria e a janella é tam baixa que eu morreria, mas era ainda mais maçada para os outros, e estou a ver-me na rua com uma macaca, com as pernas á vela e a corcunda a sahir pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque a gente é como é não como tinha vontade de ser - e enfim porque lhe estou eu a escrever se lhe não vou mandar esta carta? O senhor que anda de um lado para o outro não sabe qual é o peso de a gente não ser ninguem. Eu estou á janella todo o dia e vejo toda a gente passar de um lado para o outro e ter um modo de vida e gosar e fallar a esta e áquella, e parece que sou um vaso com uma planta murcha que ficou aqui á janella por tirar de lá. O senhor não pode imaginar, porque é bonito e tem saude o que é a gente ter nascido e não ser gente, e ver nos jornaes o que as pessoas fazem, e uns são ministros e andam de um lado para o outro a visitar todas as terras, e outros estão na vida da sociedade e casam e teem baptizados e estão doentes e fazem-lhe operações os mesmos medicos, e outros partem para as suas casas aqui e alli, e outros roubam e outros queixam-se, e uns fazem grandes crimes e ha artigos assignados por outros e retratos e annuncios com os nomes dos homens que vão comprar as modas ao estrangeiro, tudo isto o senhor não imagina o que é para quem é um trapo como eu que ficou no parapeito da janella de limpar o sinal redondo dos vasos quando a pintura é fresca por causa da agua.