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LUMEM FIDEI (À LUZ DA FÉ). FR. PEDRO PAULO DOS REIS MENDES, SCJ. INTRODUÇÃO.
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LUMEM FIDEI (À LUZ DA FÉ) FR. PEDRO PAULO DOS REIS MENDES, SCJ
INTRODUÇÃO • A luz da fé é a expressão com que a tradição da Igreja designou o grande dom trazido por Jesus. Eis como Ele Se nos apresenta, no Evangelho de João: “Eu vim ao mundo como luz, para que todo o que crê em Mim não fique nas trevas” (Jo 12, 46).
UMA LUZ ILUSÓRIA? • E contudo podemos ouvir a objeção que se levanta de muitos dos nossos contemporâneos, quando se lhes fala desta luz da fé. Nos tempos modernos, pensou-se que tal luz poderia ter sido suficiente para as sociedades antigas, mas não servia para os novos tempos, para o homem tornado adulto, orgulhoso da sua razão, desejoso de explorar de forma nova o futuro. Nesta perspectiva, a fé aparecia como uma luz ilusória, que impedia o homem de cultivar a ousadia do saber
Uma luz a redescobrir • Por isso, urge recuperar o caráter de luz que é próprio da fé, pois, quando a sua chama se apaga, todas as outras luzes acabam também por perder o seu vigor. A fé nasce no encontro com o Deus vivo, que nos chama e revela o seu amor: um amor que nos precede e sobre o qual podemos apoiar-nos para construir solidamente a vida. A fé, que recebemos de Deus como dom sobrenatural, aparece-nos como luz para a estrada orientando os nossos passos no tempo. A fé não mora na escuridão, mas é uma luz para as nossas trevas.
CAPÍTULO 1 - ACREDITÁMOS NO AMOR (cf. 1 Jo4, 16) • Abraão, nosso pai na fé • A fé desvenda-nos o caminho e acompanha os nossos passos na história. Por isso, se quisermos compreender o que é a fé, temos de explanar o seu percurso, o caminho dos homens crentes, com os primeiros testemunhos já no Antigo Testamento.
A fé está ligada à escuta. Abraão não vê Deus, mas ouve a sua voz. Deste modo, a fé assume um carácter pessoal: o Senhor não é o Deus de um lugar, nem mesmo o Deus vinculado a um tempo sagrado específico, mas o Deus de uma pessoa, concretamente o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, capaz de entrar em contato com o homem e estabelecer com ele uma aliança. A fé é a resposta a uma Palavra que interpela pessoalmente, a um Tu que nos chama pelo nome.
A fé “vê” na medida em que caminha, em que entra no espaço aberto pela Palavra de Deus
A FÉ DE ISRAEL. • A história do povo de Israel, no livro do Êxodo, continua na esteira da fé de Abraão. De novo, a fé nasce de um dom originador: Israel abre-se à ação de Deus, que quer libertá-lo da sua miséria. A fé é chamada a um longo caminho, para poder adorar o Senhor no Sinai e herdar uma terra prometida. O amor divino possui os traços de um pai que conduz seu filho pelo caminho (cf. Dt 1, 31).
A PLENITUDE DA FÉ CRISTÃ • A fé não só olha para Jesus, mas olha também a partir da perspectiva de Jesus e com os seus olhos: é uma participação no seu modo de ver. A fé cristã é fé na encarnação do Verbo e na sua ressurreição na carne; é fé num Deus que se fez tão próximo que entrou na nossa história.
A salvação pela fé • A partir desta participação no modo de ver de Jesus, o apóstolo Paulo deixou-nos, nos seus escritos, uma descrição da existência crente. Aquele que acredita, ao aceitar o dom da fé, é transformado numa nova criatura, recebe um novo ser, um ser filial, torna-se filho no Filho: “Abbá-Pai” é a palavra mais característica da experiência de Jesus, que se torna centro da experiência cristã (cf. Rm8, 15). Quando o homem pensa que, afastando-se de Deus, encontrar-se-á a si mesmo, a sua existência fracassa (cf. Lc15, 11- -24). O início da salvação é a abertura a algo que nos antecede, a um dom originário que sustenta a vida e a guarda na existência. Só abrindo-nos a esta origem e reconhecendo-a é que podemos ser transformados, deixando que a salvação atue em nós e torne a vida fecunda, cheia de frutos bons.
A forma eclesial da fé • IGREJA CORPO DE CRISTO. • CRISTO CABEÇA, NÓS OS MEMBROS.
CAPÍTULO II-SENÃO ACREDITARDES, NÃO COMPREENDEREIS (cf. Is7, 9) • Lido a esta luz, o texto de Isaías faz-nos concluir: o homem precisa de conhecimento, precisa de verdade, porque sem ela não se mantém de pé, não caminha. Sem verdade, a fé não salva, não torna seguros os nossos passos. Seria uma linda fábula, a projeção dos nossos desejos de felicidade, algo que nos satisfaz só na medida em que quisermos nos iludir; ou então reduzir-se-ia a um sentimento bom que consola e afaga, mas permanece sujeito às nossas mudanças de ânimo, à variação dos tempos, incapaz de sustentar um caminho constante na vida.
Conhecimento da verdade e amor. • A fé transforma a pessoa inteira, precisamente na medida em que ela se abre ao amor; é neste entrelaçamento da fé com o amor que se compreende a forma de conhecimento própria da fé, a sua força de convicção, a sua capacidade de iluminar os nossos passos. • O amor surge, hoje, como uma experiência ligada, não à verdade, mas ao mundo inconstante dos sentimentos. Apenas na medida em que o amor estiver fundado na verdade é que pode perdurar no tempo, superar o instante efêmero e permanecer firme para sustentar um caminho comum. Se o amor não tivesse relação com a verdade, estaria sujeito à alteração dos sentimentos e não superaria a prova do tempo.
A fé como escuta e visão • Justamente porque o conhecimento da fé está ligado à aliança de um Deus fiel, que estabelece uma relação de amor com o homem e lhe dirige a Palavra, é apresentado pela Bíblia como escuta, aparece associado com o ouvido.
A conexão entre o ver e o ouvir, como órgãos do conhecimento da fé, aparece com a máxima clareza no Evangelho de João, onde acreditar é simultaneamente ouvir e ver. A escuta da fé verifica-se segundo a forma de conhecimento própria do amor: é uma escuta pessoal, que distingue e reconhece a voz do Bom Pastor (cf. Jo 10, 3-5); uma escuta que requer o seguimento, como acontece com os primeiros discípulos que, “ouvindo (João Baptista) falar desta maneira, seguiram Jesus” (Jo 1, 37). • A verdade que a fé nos descerra é uma verdade centrada no encontro com Cristo, na contemplação da sua vida, na percepção da sua presença.
O diálogo entre fé e razão • A fé cristã, enquanto anuncia a verdade do amor total de Deus e abre para a força deste amor, chega ao centro mais profundo da experiência de cada homem, que vem à luz graças ao amor e é chamado ao amor para permanecer na luz. • Temos aqui o Deus pessoal da Bíblia, capaz de falar ao homem, descer para viver com ele e acompanhar o seu caminho na história, manifestando-se no tempo da escuta e da resposta.
A fé e a busca de Deus • A luz da fé em Jesus ilumina também o caminho de todos aqueles que procuram a Deus e oferece a contribuição própria do cristianismo para o diálogo com os seguidores das diferentes religiões. • Deste modo, é possível compreender que o caminho do homem religioso passa pela confissão de um Deus que cuida dele e que se pode encontrar.
Imagem desta busca são os Magos, guiados pela estrela até Belém (cf. Mt2, 1-12). A luz de Deus mostrou-se-lhes como caminho, como estrela que os guia ao longo duma estrada a descobrir. Deste modo, a estrela fala da paciência de Deus com os nossos olhos, que devem habituar-se ao seu fulgor. Encontrando-se a caminho, o homem religioso deve estar pronto a deixar-se guiar, a sair de si mesmo para encontrar o Deus que não cessa de nos surpreender.
Fé e teologia • Como luz que é, a fé convida-nos a penetrar nela, a explorar sempre mais o horizonte que ilumina, para conhecer melhor o que amamos. Deste desejo nasce a teologia cristã; assim, é claro que a teologia é impossível sem a fé e pertence ao próprio movimento da fé, que procura a compreensão mais profunda da auto-revelação de Deus, culminada no Mistério de Cristo. Deus não pode ser reduzido a objeto; Ele é Sujeito que se dá a conhecer e manifesta na relação pessoa a pessoa.
CAPÍTULO IIITRANSMITO-VOS AQUILO QUERECEBI (cf. 1 Cor 15, 3) • É impossível crer sozinhos. A fé não é só uma opção individual que se realiza na interioridade do crente, não é uma relação isolada entre o “eu” do fiel e o “Tu” divino, entre o sujeito autónomo e Deus; mas, por sua natureza, abre-se ao “nós”, verifica-se sempre dentro da comunhão da Igreja. Esta abertura ao “nós” eclesial realiza-se de acordo com a abertura própria do amor de Deus, que não é apenas relação entre o Pai e o Filho, entre “eu” e “tu”, mas, no Espírito, é também um “nós”, uma comunhão de pessoas. Por isso mesmo, quem crê nunca está sozinho; e, pela mesma razão, a fé tende a difundir-se, a convidar outros para a sua alegria.
Os sacramentos e a transmissão da fé • Como sucede em cada família, a Igreja transmite aos seus filhos o conteúdo da sua memória. Como se deve fazer esta transmissão de modo que nada se perca, mas antes que tudo se aprofunde cada vez mais na herança da fé? É através da Tradição Apostólica, conservada na Igreja com a assistência do Espírito Santo, que temos contato vivo com a memória fundadora. O meio são os sacramentos celebrados na liturgia da Igreja: neles, comunica-se uma memória encarnada, ligada aos lugares e épocas da vida, associada com todos os sentidos; neles, a pessoa é envolvida, como membro de um sujeito vivo, num tecido de relações comunitárias.
Fé, oração e Decálogo • Há mais dois elementos que são essenciais na transmissão fiel da memória da Igreja. O primeiro é a Oração do Senhor, o Pai Nosso; nela, o cristão aprende a partilhar a própria experiência espiritual de Cristo e começa a ver com os olhos d’Ele. A partir d’Aquele que é Luz da Luz, do Filho Unigénito do Pai, também nós conhecemos a Deus e podemos inflamar outros no desejo de se aproximarem d’Ele. Igualmente importante é ainda a ligação entre a fé e o Decálogo.
Dissemos já que a fé se apresenta como um caminho, uma estrada a percorrer, aberta pelo encontro com o Deus vivo; por isso, à luz da fé, da entrega total ao Deus que salva, o Decálogo adquire a sua verdade mais profunda, contida nas palavras que introduzem os Dez Mandamentos: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do Egito” (Ex 20, 2). • Toquei assim os quatro elementos que resumem o tesouro de memória que a Igreja transmite: a confissão de fé, a celebração dos sacramentos, o caminho do Decálogo, a oração.
A unidade e a integridade da fé • A unidade da Igreja, no tempo e no espaço, está ligada com a unidade da fé: “Há um só Corpo e um só Espírito, (...) uma só fé” (Ef 4, 4-5). Hoje poderá parecer realizável a união dos homens com base num compromisso comum, na amizade, na partilha da mesma sorte com uma meta comum; mas sentimos muita dificuldade em conceber uma unidade na mesma verdade; parece-nos que uma união do género se oporia à liberdade do pensamento e à autonomia do sujeito. Pelo contrário, a experiência do amor diz-nos que é possível termos uma visão comum precisamente no amor: neste, aprendemos a ver a realidade com os olhos do outro e isto, longe de nos empobrecer, enriquece o nosso olhar
CAPÍTULO IV-DEUS PREPARA PARA ELES UMA CIDADE (cf. Heb11, 16) • Ao apresentar a história dos patriarcas e dos justos do Antigo Testamento, a Carta aos Hebreus põe em relevo um aspecto essencial da sua fé; esta não se apresenta apenas como um caminho, mas também como edificação, preparação de um lugar onde os homens possam habitar uns com os outros. O primeiro construtor é Noé, que, na arca, consegue salvar a sua família (cf. Heb 11, 7). Depois aparece Abraão, de quem se diz que, pela fé, habitara em tendas, esperando a cidade de alicerces firmes (cf. Heb 11, 9-10). A fé revela quão firmes podem ser os vínculos entre os homens, quando Deus Se torna presente no meio deles.
A fé e a família • No caminho de Abraão para a cidade futura, a Carta aos Hebreus alude à bênção que se transmite dos pais aos filhos (cf. 11, 20-21). O primeiro âmbito da cidade dos homens iluminado pela fé é a família; penso, antes de mais nada, na união estável do homem e da mulher no matrimônio.
Em família, a fé acompanha todas as idades da vida, a começar pela infância: as crianças aprendem a confiar no amor de seus pais. Por isso, é importante que os pais cultivem práticas de fé comuns na família, que acompanhem o amadurecimento da fé dos filhos. Sobretudo os jovens, que atravessam uma idade da vida tão complexa, rica e importante para a fé, devem sentir a proximidade e a atenção da família e da comunidade eclesial no seu caminho de crescimento da fé.
Uma luz para a vida em sociedade • Assimilada e aprofundada em família, a fé torna-se luz para iluminar todas as relações sociais. Como experiência da paternidade e da misericórdia de Deus, dilata-se depois em caminho fraterno. Na Idade Moderna, procurou-se construir a fraternidade universal entre os homens, baseando-se na sua igualdade; mas, pouco a pouco, fomos compreendendo que esta fraternidade, privada do referimento a um Pai comum como seu fundamento último, não consegue subsistir; por isso, é necessário voltar à verdadeira raiz da fraternidade.
Uma força consoladora no sofrimento • A luz da fé não nos faz esquecer os sofrimentos do mundo. Os que sofrem foram mediadores de luz para tantos homens e mulheres de fé; tal foi o leproso para São Francisco de Assis, ou os pobres para a Beata Teresa de Calcutá.
Compreenderam o mistério que há neles; aproximando-se deles, certamente não cancelaram todos os seus sofrimentos, nem puderam explicar todo o mal. A fé não é luz que dissipa todas as nossas trevas, mas lâmpada que guia os nossos passos na noite, e isto basta para o caminho. Ao homem que sofre, Deus não dá um raciocínio que explique tudo, mas oferece a sua resposta sob a forma duma presença que o acompanha, duma história de bem que se une a cada história de sofrimento para nela abrir uma brecha de luz. Em Cristo, o próprio Deus quis partilhar conosco esta estrada e oferecer-nos o seu olhar para nela vermos a luz. Cristo é aquele que, tendo suportado a dor, Se tornou “autor e consumador da fé” (Heb 12,2).
FELIZ DAQUELA QUE ACREDITOU (cf. Lc 1, 45) • Na parábola do semeador, São Lucas refere estas palavras com que o Senhor explica o significado da “terra boa”: “São aqueles que, tendo ouvido a palavra com um coração bom e virtuoso, conservam-na e dão fruto com a sua perseverança” (Lc 8, 15).
No contexto do Evangelho de Lucas, a menção do coração bom e virtuoso, em referência à Palavra ouvida e conservada, pode constituir um retrato implícito da fé da Virgem Maria; o próprio evangelista nos fala da memória de Maria, dizendo que conservava no coração tudo aquilo que ouvia e via, de modo que a Palavra produzisse fruto na sua vida. A Mãe do Senhor é ícone perfeito da fé, como dirá Santa Isabel: “Feliz de ti que acreditaste” (Lc 1, 45).
No centro da fé, encontra-se a confissão de Jesus, Filho de Deus, nascido de mulher, que nos introduz, pelo dom do Espírito Santo, na filiação adotiva (cf. Gl 4, 4-6).
LUMEM FIDEI (À LUZ DA FÉ) FR. PEDRO PAULO DOS REIS MENDES, SCJ