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Cristina Santo 19 de Março de 2009. “The Thought Which Sees | O Pensamento Que Vê” - René Magritte. “eu crio o desconhecido com coisas conhecidas” Magritte. “Drawing Hands | Mãos Desenhando“ - M. C. Escher. I -Testemunhos da escrita / leitura.
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Cristina Santo 19 de Março de 2009 “The Thought Which Sees | O Pensamento Que Vê” - René Magritte
“eu crio o desconhecido com coisas conhecidas” Magritte “Drawing Hands | Mãos Desenhando“ - M. C. Escher
I -Testemunhos da escrita / leitura «Acontece-me às vezes estar tão desesperado que me refugio no papel como quem se esconde para chorar. E o mais estranho é arrancar da minha angústia palavras de profunda reconciliação com a vida.» «É em leitores assim, para quem o gosto da poesia é uma aliança de lucidez, uma exigência de aventura e rigor, que eu gostaria que os meus versos encontrassem ressonância…» Eugénio de Andrade
«Conheço as palavras pelo dorso. Outro, no meu lugar diria que sou um domador das palavras. Mas só eu – eu e os meus irmãos – sei em que medida sou eu que sou domado por elas. A iniciativa pertence-lhes. São elas que conduzem o meu trenó sem chicote nem rédeas, nem caminho determinado antes da grande aventura. Sim, conheço as palavras. Tenho um vocabulário próprio. O que sofri, o que vim a saber com muito esforço fez inchar, rolar umas sobre as outras todas as palavras. (…) A minha vida passou para o dicionário que sou. A vida não interessa. Alguém que me procure tem de começar – e de se ficar – pelas palavras.» Ruy Belo
A Escritalidade A idade da escrita é a minha idade a idade que passa a idade percurso o percurso do recurso Não tenho outro recurso A idade da escrita é a idade muda: A idade que olha que fala para ver que olha para saber Não escrevo para dizer: escrevo para dizer o que não pode ser dito Ana Hatherly
«Fala-se às vezes da inspiração a propósito de quem escreve a obra. Mas nunca se diz isso de quem a lê. Mas lê-la é escrevê-la outra vez. Um livro que se escreveu é imutável. O mesmo livro que se lê não o é. A inspiração de quem escreve um livro cumpre-se nele sem mais para o autor. Mas a de quem o reescreve, ou seja lê, é sempre variável.» «Toda a leitura é um cruzamento de vozes – daquele que lê e do livro lido. E esse encontro é casual e diverso e faz soltar do livro a voz que procurávamos e estava certa porque era nossa. (…) Como nos lugares revisitados toma-nos a surpresa de eles serem e não serem os mesmos. Uma frase em extensão que me emocionou pode ser agora detestável de ridículo e elementaridade. Mas pode dar-se o inverso e a luz acender-se onde estava uma treva.» Vergílio Ferreira
«As palavras dos outros são erros do nosso ouvir, naufrágios do nosso entender. Com que confiança cremos no nosso sentido das palavras dos outros.» Livro do Desassossego «Para criar destruí-me; tanto me exteriorizei dentro de mim, que dentro de mim não existo senão exteriormente. Sou a cena nua onde passam vários actores representando várias peças.» Livro do Desassossego «Se sonho, parece que me escrevem, Se sinto parece que me pintam.» Fernando Pessoa, in Livro do Desassossego por Bernardo Soares «Tenho uma pena que escreve Aquilo que sempre sinta Se é mentira escreve leve Se é verdade não tem tinta» Fernando Pessoa
«Era uma vez uma história tão impressionante que quando alguém a lia o livro começava a transpirar pelas folhas. Se o leitor fosse muito bom o livro soltava mesmo algumas pequeninas gotas de sangue.» Ana Hatherly «As montanhas deslocam-se pela energia das palavras, aparecem pessoas, animais, corolas, sítios negros, e os astros crispados pela energia das palavras, cria-se o silêncio pela energia das palavras. Escrever é perigoso.» Herberto Helder
II.O equilíbrio instável do Eu “Reproduction Interdite | Reprodução Interdita” - René Magritte
Estou só de mais no mundo, mas não só bastante para sagrar cada hora. Sou pequeno de mais no mundo, mas não pequeno bastante para ser perante ti como uma coisa escura e esperta. Eu quero e quero acompanhar meu querer nos caminhos da acção; e quero em tempos serenos ou hesitantes, quando algo se aproxima estar entre os que sabem ou só. Quero espelhar-te sempre em corpo inteiro e não quero ser nunca cego ou velho para segurar a tua pesada imagem vacilante.
Quero desdobrar-me Não quero ficar torcido em nada, pois sou mentido ali onde sou torcido. E quero o meu sentido verdadeiro perante ti. Quero descrever-me como um quadro que vi muito tempo e de perto como uma palavra que compreendi como o meu jarro de todos os dias, como a face da minha mãe, como um barco que me trouxe através da mais mortal tormenta.
«Não consegui nunca ver-me de fora. Não há espelho que nos dê a nós como foras, porque não há espelho que nos tire de nós mesmos.» Livro do Desassossego «(Escre)ver-me nunca escrevi sou apenas um tradutor de silêncios A vida tatuou-me nos olhos janelas em que me transcrevo e apago sou um soldado que se apaixona pelo inimigo que vai matar.» Mia Couto
E se fossemos rir, Rir de tudo, tanto Que à força de rir Nos tornássemos pranto, Pranto colector Do que em nós sobeja? No riso, na dor, Que o homem se veja. Se veja disforme, Se disforme for. Um horror enorme? Há outro maior... Alexandre O’Neill
«A minha sombra sou eu, Ela não me segue, Eu estou na minha sombra E não vou em mim. (...) Passa-se tudo em seguir-me e finjo que sou eu que sigo, finjo que sou eu que vou e não que me persigo Faço por confundir a minha sombra comigo: Estou sempre às portas da vida, Sempre às portas de mim» Almada Negreiros «Mas quem escreveu esse enredo Que eu represento no personagem de mim? E eu assisto-me a mim próprio representando o que não sou um papel que não faço num enredo onde não existo senão para que o público siga o programa e passe mais umas horas deste mundo!» Almada Negreiros «Os homens copiavam os anjos Os anjos copiavam os homens Ambos copiavam a inocência A inocência copiava as feras» Natália Correia
A inquietação gera a metáfora a solidão o símbolo. O sentido da vida: as mãos dadas e o caminho. Teresa Balté
Pode Alguém Ser Quem Não É - Senhora de preto diga o que lhe dói é dor ou saudade que o peito lhe rói o que tem, o que foi o que dói no peito? - É que o meu homem partiu Disse-me na praia frente ao paredão “tira a tua saia dá-me a tua mão o teu corpo, o teu mar teu andar, teu passo que vai sobre as ondas, vem” Pode alguém ser quem não é? Pode alguém ser quem não é? Pode alguém ser quem não é? Seja um bom agoiro ou seja um mau presságio sonhei com o choro de alguém num naufrágio não tenho confiança já cansa este esperar por uma carta em vão “por cá me governo” escreveu-me então “aqui é quase Inverno aí quase Verão mês d’Abril, águas mil no Brasil também tem noites de S. João e mar” Pode alguém ser quem não é? É estranho no ventre ser de outro lugar e tão confusamente ver desmoronar um a um sonhos sãos duas mãos passando da alegria ao desamor Pode alguém ser livre se outro alguém não é a algema dum outro serve-me no pé nas duas mãos, sonhos vãos, pesadelos diz-me: Pode alguém ser quem não é? Sérgio Godinho
“The Amorous Vista | A Vista Amorosa” René Magritte “Les Clefs Des Champs | As Chaves Do Campo” René Magritte “Le Telescope | O Telescópio” René Magritte “Unexpected Answer | Resposta Inesperada” René Magritte III. Poesia: habitar o mundo / espaço
«Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema não fala de uma vida ideal mas sim de uma vida concreta. Não tenho explicações Olho e confronto E por método é nu meu pensamento A terra o sol o vento o mar são minha biografia e são meu rosto» Sophia de Mello Breyner Andresen
«Pergunta Diz-me a cor da tua inquietação: A seara no vento, o levante da onda O verde O degelo ou a sombra?» Teresa Balté «um pouco de um astro: meio homem, meio lua, meio sol» René Char (trad.) «Vimos da escuridão e somos luz, Ou nascemos da luz e somos sombra?» Teresa Balté
Passo a noite a sonhar o amanhecer. Sou a ave da esperança. Pássaro triste que na luz do sol Aquece as alegrias do futuro. O tempo que há-de vir sem este muro De silêncio e de negrura Miguel Torga Pressinto os ventos que chegam, tenho de vivê-los E desdobro-me e dobro-me sobre mim E arremesso-me e vejo-me sozinho Na tempestade imensa Rilke Uma casa para eu ter a humildade de ser espaço A líquida frescura de uma jarra Um passo leve e certo em cada sombra Um ninho em cada ouvido De doces abelhas cegas. Uma casa uma caixa de música e sossego Um violão adormecido na doçura Um mar longínquo à volta atrás do campo Uma inundação de verdura e espessa paz Uma repetida e vasta constelação de grilos E os galos alacres do silêncio Antonio Ramos Rosa Já alguém sentiu a loucura Vestir de repente o nosso corpo? Já. E tomar a forma dos objectos? Sim. E acender relâmpagos no pensamento? Também. E às vezes parecer o fim? Exactamente, Almada Negreiros
«E o que não é frágil é tão firme que ameaça não se mudar e ficar igual para sempre como fogo que não se apagasse terramoto que não se travasse inundação que não escoasse tumulto que não se cansasse repouso que não findasse dor que não matasse vida que não morresse! Frágil é a Vida e sólido tudo o mais frágil é o fio que sustém a vida no ar e sólido tudo onde se despedaça a vida se se parte o fio que a sustém no ar (...) Frágil é a Vida e mais frágil que a vida só nós enquanto somos Vida enquanto a luz não nos evita enquanto é tanta a luz que damos como a que recebemos enquanto os átomos da morte não descobrem o seu novo caminho» Almada Negreiros «Avançando veloz através do espaço, avançando através Do céu e das estrelas, Avançando veloz entre os satélites e o grande anel, E o diâmetro de oitenta mil milhas, Veloz com os cometas, lançando bolas de fogo como eles, (...) Enfurecendo, alegrando, planeando, amando, alertando, Para trás e para diante, aparecendo e desaparecendo, Noite e dia percorro esses caminhos Visito os pomares dos planetas, observo os frutos, E vejo milhões de frutos maduros e milhões de frutos verdes. Os meus voos são os voos de uma alma fluida E devoradora, 0 meu rumo faz-se debaixo das sondas Sirvo-me do material e do imaterial Não há guarda que me detenha, não há lei que me impeça.» Walt Whitman
O valor do vento Está hoje um dia de vento e eu gosto do vento O vento tem entrado nos meus versos de todas as maneiras só entram nos meus versos as coisas de que gosto O vento das árvores o vento dos cabelos o vento do inverno o vento do verão O vento é o melhor veículo que conheço Só ele traz o perfume das flores só ele traz a música de jazz a beira mar em agosto Mas só hoje soube o verdadeiro valor do vento O vento actualmente vale oitenta escudos Partiu-se o vidro grande da janela do meu quarto. Ruy Belo
Eu tudo encontro alegremente exacto Lavo, refresco, limpo os meus sentidos. E tangem-me, excitados, sacudidos, O tacto, a vista, o ouvido, o gosto e o olfacto Cristalizações, Cesário Verde «No interior da música o silêncio que regaço procura? Que interior é esse onde a luz tem morada?» «Essa música ou terra quando a terra é barco essa música ou chama Quando a chama é onda essa música - eras tu? ou um pássaro na sombra?» «Que música escutas tão atentamente que não dás por mim? que bosque, ou rio, ou mar? ou é dentro de ti que tudo canta ainda?» Eugénio de Andrade «Não se perdeu nenhuma coisa em mim Continuam as noites e os poentes Que escorreram na casa e no jardim, Que intactas no meu ser estão suspensas. Trago o terror e a claridade E através de todas as presenças Caminho para a única unidade.» Sophia de Mello Breyner Andresen (...)«Se deixaste de pintar foi porque dizias que a pintura levava muito tempo a executar E tu querias sentir o coração das coisas, sangrar, ou explodir a cada segundo, lembras-te?» (...)«Sempre que posso fujo. Fujo no olhar que cegou o meu. Porque eu fujo e vou com tudo aquilo que me chama e toca..» AI Berto
Por Este Rio Acima Por este rio acima Deixando para trás A côncava funda Da casa do fumo Cheguei perto do sonho Flutuando nas águas Dos rios dos céus Escorre o gengibre e o mel Sedas porcelanas Pimenta e canela Recebendo ofertas De músicas suaves Em nossas orelhas leve como o ar A terra a navegar Meu bem como eu vou Por este rio acima Por este rio acima Os barcos vão pintados De muitas pinturas Descrevem varandas E os cabelos de Inês Desenham memórias Ao longo da água Bosques enfeitiçados Soutos laranjeiras Campinas de trigo Amores repartidos Afagam as dores Quando são sentidos Monstros adormecidos Na esfera do fogo Como nasce a paz Por este rio acima Meu sonho Quanto eu te quero Eu nem sei Eu nem sei Fica um bocadinho mais Que eu também Que eu também meu bem Por este rio acima isto que é de uns Também é de outros Não é mais nem menos Nascidos foram todos Do suor da fêmea Do calor do macho Aquilo que uns tratam Não hão-de tratar Outros de outra coisa Pois o que vende o fresco Não vende o salgado Nem também o seco Na terra em harmonia Perfeita e suave das margens do rio Por este rio acima Meu sonho Quanto eu te quero Eu nem sei Eu nem sei Fica um bocadinho mais Que eu também Que eu também meu bem Por este rio acima Deixando para trás A côncava funda Da casa do fumo Cheguei perto do sonho Flutuando nas águas Dos rios dos céus Escorre o gengibre e o mel Sedas porcelanas Pimenta e canela Recebendo ofertas De músicas suaves Em nossas orelhas leve como o ar A terra a navegar Meu bem como eu vou Por este rio acima Fausto
Poesia: IV . Amor…Encontro/Desencontro… “Lovers | Amantes” - René Magritte
«Trouxera-te nos lábios um poema Invisível Daqueles que se inventam De surpresa em surpresa Dia a dia Lentamente solenes e serenos Até à conjunção de ambos os termos» «Amor De sentidos atentos Nunca exaustos nem extremos O improviso o artifício Do exercício conjuntivo Urgente Assim Até depois Quem abe Até à próxima versão Possível De em nova convenção Corrermos os dois até ao fim» Teresa Balté «Vem desenha no meu corpo os gestos de amor Que eu hoje não estou humilde mas de vontade livre E de comum acordo jogaremos ao todo Enquanto for possível (...) Vem de vontade livre enquanto for possível Jogaremos ao difícil» «Os lábios aderentes aos corredores do tempo Aspiram paraísos O rosto que perderam decora nas molduras Os espelhos e retratos onde nos recolhemos A casa é o incesto A cena da loucura»
«Que nem podemos dizer o deserto do nosso deserto. Que vamos fazer? Esperar talvez que um oásis imprevisível seja algures real no impossível da sua realidade. Talvez escrevendo uma carta de amor. A quem? A ninguém. Ao imaginário de quando havia fadas e o mais que nunca existiu. Querida. Veio-me hoje uma vontade enorme de te inventar. Há-de haver algures um bosque, um parque à beira rio, uma flor num caminho onde não passa ninguém. É a altura de apareceres e darmos as mãos.» Vergílio Ferreira
Que pode um criatura senão, Entre criaturas, amar? Amar e esquecer, Amar e malamar, Amar, desamar, amar? Sempre, e até de olhos vidrados, amar? Que pode, pergunto, o ser amoroso, Sozinho, em rotação universal, senão Rodar também, e amar? Amar o que o mar traz à praia, o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha, é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia? Amar solenemente as palmas do deserto, O que é entrega ou adoração expectante, e amar o inóspito, o cru Um vaso sem flor, um chão de ferro, e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina, Este o nosso destino: amor sem conta Distribuído por as coisas pérfidas ou nulas, Doação ilimitada a uma completa ingratidão, e na concha vazia do amor a procura medrosa, Paciente, de mais e mais amor. Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa Amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita. Carlos Drummond de Andrade
Creio creio nos anjos que andam pelo mundo creio na deusa com olhos de diamante creio em amores lunares com piano ao fundo creio nas lendas nas fadas nos atlantes creio num engenho que falta mais fecundo de harmonizar as partes mais dissonantes creio que tudo é eterno num segundo creio num céu futuro que houve dantes creio nos deuses de um astral mais puro na flor humilde que se encosta ao muro creio na carne que enfeitiça o além creio no incrível nas coisas assombrosas na ocupação do mundo pelas rosas creio que o amor tem asas de oiro amén «Eis-me sem explicações Crucificada em amor A boca o fruto e o sabor» «Daí o amor ser o meio do homem dividido em dois E a pior metade é estarmos à espera de sermos depois (... ) Porque a vida é a ocupação Do único espaço disponível Para o possível amanhã da nossa véspera impossível Natália Correia
«Onde estavas então? Entre que gente? Dizendo que palavras? Porque vem até mim todo o amor de repente Quando me sinto triste, e te sinto tão longe? (...) Sempre, sempre te afastas pela tarde Para onde o crepúsculo corre apagando estátuas.» Pablo Neruda «Nós temos cinco sentidos São dois pares e meio d' asas. Como quereis o equilíbrio?» David Mourão Ferreira «Orquestra, flor e corpo: Doravante direi Como do corpo a música se extrai, Como sem corpo a flor não tem perfume Como do corpo o som se repercute. David Mourão Ferreira «Se eu pudesse dar-te o sopro que me foge E que fora de mim jamais se encontra Se eu pudesse dar-te aquilo que descubro E descobrir-te o que de mim se esconde...» Ana Hatherly «Por aqui vou sem programa, Sem rumo, Sem nenhum itinerário 0 destino de quem ama é vário, como o trajecto do fumo» Cecilia Meireles As horas do amor hão-de ser sempre fugazes e incendiadas, graves e temerárias, Porque o amor que se prolonga De súbito se faz ódio na repetição que o avilta José Jorge Letria
Mário Cesariny Ama como a estrada começa
Ilumina-me Gosto de ti como quem gosta do sábado, Gosto de ti como quem abraça o fogo, Gosto de ti como quem vence o espaço, Como quem abre o regaço, Como quem salta o vazio, Um barco aporta no rio, Um homem morre no esforço, Sete colinas no dorso E uma cidade p’ra mim. Gosto de ti como quem mata o degredo, Gosto de ti como quem finta o futuro, Gosto de ti como quem diz não ter medo, Como quem mente em segredo, Como quem baila na estrada, Vestido feito de nada, As mãos fartas do corpo, Um beijo louco no porto E uma cidade p’ra ti. Enquanto não há amanhã, Ilumina-me, Ilumina-me. Enquanto não há amanhã, Ilumina-me, Ilumina-me. Gosto de ti como uma estrela no dia, Gosto de ti quando uma nuvem começa, Gosto de ti quando o teu corpo pedia, Quando nas mãos me ardia, Como silêncio na guerra, Beijos de luz e de terra, E num passado imperfeito, Um fogo farto no peito E um mundo longe de nós. Enquanto não há amanhã, Ilumina-me, Ilumina-me. Enquanto não há amanhã, Ilumina-me, Ilumina-me. Pedro Abrunhosa
«Vivo sempre no presente. O futuro não o conheço. O passado, já não tenho. Pesa-me um como a possibilidade de tudo, o outro como a realidade de nada. Não tenho esperanças nem saudades. (…) Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua, mas não o texto.» Livro do Desassossego «Os poetas só têm uma missão – se lhes quisermos assacar qualquer missão, do que muitas vezes duvido: cantarem. Cantarem o Presente. Amarem o Presente. Insultarem o Presente. Viverem as paixões, as lutas, os amores, a porcaria, as molezas, as incoerências, o nada e o tudo do Presente. O Presente, o Presente apenas, só o Presente! Os raros que chegam ao Futuro são os que, mercê de um luminoso toque de génio, conseguem esticar o Presente até lá. («O Futuro? Mas o Futuro que não se fixa – e nada se fixa – é sempre o Passado», murmura-me o exíguo filósofo que me acompanha sempre para me recordar os desesperos óbvios. Tão óbvios que nem reparamos neles.)» José Gomes Ferreira
O Futuro? Ouçam: não me venham com essa léria do Futuro – visão do Céu na Terra enfeitada de bandeiras de corações cristalinos, amor universal nos lábios quentes do frio da justiça, calabouços só para teias de aranha, polícias a fazerem paciências com fantasmas, soldados empenhados em criações de pombos, bombeiros com asas para apagarem o incêndio dos poentes… O Futuro? Por favor não me venham com essa tremenda maçada da felicidade do Futuro duma inocência de sonhos últimos atravessados por paraísos de tédio – com os homens a darem os corações de pão de ló à fome dos pássaros. Felizmente que não o sofrerei. Nem terei o trabalho de ajudar a voltá-lo do avesso. Porque, acreditem, com um Futuro assim tão quimicamente puro e insípido, os homens não descansarão enquanto não tornarem tudo outra vez injusto com organizações clandestinas especiais a favor da Desigualdade e manifestações de rua aos gritos de viva a Fome!, viva a Injustiça! (para voltarmos a desejar a Justiça), abaixo os bocejos! José Gomes Ferreira «Estamos no que fomos À espera do que importa» Natália Correia
«Nascer é o feito dos outros 0 nosso é depois de nascer Até chegarmos a ser Aquele que o sonho nos faz» Almada Negreiros « 0 tempo. A Memória. 0 sem fim da extensão de nós» Vergílio Ferreira «...Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente. Acendo a estória, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz...» Mia Couto in Terra Sonâmbula «Mas horas há que marcam fundo... Feitas, em cada um de nós, De eternidades de segundo, Cuja saudade extingue a voz. Ao nosso ouvido, embaladora, A ama de todos os mortais, A esperança prometedora, Segreda coisas irreais.» Manuel Bandeira «É sempre nos meus lábios a estampilha É sempre no meu não, aquele trauma. Sempre no meu amor a noite rompe Sempre dentro de mim meu inimigo E sempre no meu sempre a mesma ausência.» Carlos Drummond de Andrade
«a idade é isto: o peso da luz com que nos vemos» Mia couto «Tio Afrânio diz: temos duas eternidades, a vida e a morte. Pena é que uma delas seja tão breve.» Mia Couto «Criança, eu sabia suspender o tempo soterrar abismos e nomear estrelas Cresci perdi pontes, esqueci sortilégios careço da habilidade da onda hei-de aprender a carícia da brisa» Mia Couto
«Viver uma vida que domina a vida, numa duração sem duração eis o prestígio que o poeta nos sabe restituir» «Um tempo imenso, nós não temos andado e sangrado por aqui senão para captar os traços da nossa aventura comum.» «A poesia é conquista e conservação indefinida desta conquista para além de nós que murmura o nosso naufrágio, derrota a nossa decepção» «0 instante uma partícula concedida pelo Tempo e incendiada por nós» «Poeta, aquele que conserva os infinitos rostos do vivente» «A vida pinta-nos e a morte desenha-nos» «0 poema é o amor realizado do Desejo que se mantém Desejo » «Fazemos os nossos caminhos como o fogo as suas faúlhas. Sem plano cadastral.» René Char (trad)
E por vezes E por vezes as noites duram meses E por vezes os meses oceanos E por vezes os braços que apertamos nunca mais são os mesmos E por vezes encontramos de nós em poucos meses o que a noite nos fez em muitos anos E por vezes fingimos que lembramos E por vezes lembramos que por vezes ao tomarmos o gosto aos oceanos só o sarro das noites não dos meses lá no fundo dos copos encontramos E por vezes sorrimos ou choramos E por vezes por vezes ah por vezes num segundo se evolam tantos anos David Mourão Ferreira
Quem Me Leva Os Meus Fantasmas Aquele era o tempo Em que as mãos se fechavam E nas noites brilhantes as palavras voavam, Eu via que o céu me nascia dos dedos E a Ursa Maior eram ferros acesos. Marinheiros perdidos em portos distantes, Em bares escondidos, Em sonhos gigantes. E a cidade vazia, Da cor do asfalto, E alguém me pedia que cantasse mais alto. Quem me leva os meus fantasmas, Quem me salva desta espada, Quem me diz onde é a estrada? Aquele era o tempo Em que as sombras se abriam, Em que homens negavam O que outros erguiam. E eu bebia da vida em goles pequenos, Tropeçava no riso, abraçava venenos. De costas voltadas não se vê o futuro Nem o rumo da bala Nem a falha no muro. E alguém me gritava Com voz de profeta Que o caminho se faz Entre o alvo e a seta. Quem leva os meus fantasmas, Quem me salva desta espada, Quem me diz onde é a estrada? De que serve ter o mapa Se o fim está traçado, De que serve a terra à vista Se o barco está parado, De que serve ter a chave Se a porta está aberta, De que servem as palavras Se a casa está deserta? Quem me leva os meus fantasmas, Quem me salva desta espada, Quem me diz onde é a estrada? Pedro Abrunhosa
Poesia VI. O mundo do Outro Cooperação/Conflito “Reconnaissance Infinie | O Reconhecimento Infinito” René Magritte “Golconde” - René Magritte “Decalcomania” - René Magritte
Venham leis e homens de balanças, mandamentos d’ aquém e além mundo. Venham ordens, decretos e vinganças, desça em nós o juiz até ao fundo. Nos cruzamentos todos da cidade a luz vermelha brilhe inquisidora, risquem no chão os dentes da vaidade e mandem que os lavemos a vassoura. A quantas mãos existam peçam dedos para sujar nas fichas dos arquivos. Não respeitem mistérios nem segredos que é natural os homens serem esquivos. Ponham livros de ponto em toda a parte, relógios a marcar a hora exacta. Não aceitem nem queiram outra arte que a proeza do registo, o verso acta. Mas quando nos julgarem bem seguros, cercados de bastões e fortalezas, hão-de ruir em estrondo os altos muros e chegará o dia das surpresas. José Saramago
(...) Mas não importa, porque eu sei que não estou sozinho no meu desespero e na minha revolta. Sei pela luz que passa de homem para homem quando alguém faz o gesto de matar, pela que se extingue em cada homem à vista dos massacres, sei pelas palavras que uivam, pelas que sangram, pelas que arrancam os lábios, sei pelos jogos selvagens da infância, por um estandarte negro sobre o coração, pela luz crepuscular como uma navalha nos olhos, pelas cidades que chegam durante as tempestades, pelos que se aproximam de peito descoberto ao cair da noite – um a um mordem os pulsos e cantam – sei pelos animais feridos, pelos que cantam nas torturas (...) António José Forte
« Os escravos precisam dos escravos para afixar autoridade dos tiranos» René Char Tenho vergonha de existir. Vergonha de aqui estar simplesmente pensando, Colaborando sem resistir. Disso, e do resto. Vergonha de sorrir para quem detesto, de responder pois é quando não é Vergonha de me ofenderem vergonha de me explorarem, vergonha de me enganarem, de me comprarem de me venderem. António Gedeão A guerra daqui não mata - mas abre fissuras Nos nervos - é o que te posso dizer deste país que escolhi para definhar a cidade é um amontoado de lixo de tapumes de sucata e de casas que se desmoronam a realidade estragou os olhos das crianças Al Berto Eu, quando choro não choro eu. Chora aquilo que nos homens em todo o tempo sofreu. As lágrimas são minhas mas o choro não é meu
«Eu não estou separado. Eu estou ‘no meio de’ . Daí o meu tormento sem expectativa» René Char «Vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter uns para os outros uma amabilidade de viagem» Livro do desassossego «Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos. Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara?» Drummond de Andrade «Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu sei que o Mundo é maior do que o bairro em que habito que o respirar de um só, mesmo que seja o meu, não pesa num total que tende para o infinito Eu sei que as dimensões impiedosas da vida ignoram todo o homem, dissolvem-no, e contudo, nesta insignificância, gratuita e desvalida, Universo sou eu, com nebulosas e tudo.» António Gedeão
«Viver é a maravilha de viver milhões de vida, de haver sempre uma outra porta para abrir e o desejo de abri-la» Fernando Namora Perfilados de medo agradecemos O medo que nos salva da loucura Decisão e coragem valem menos E a vida sem viver é mais segura Aventureiros já sem aventura, Perfilados de medo combatemos Irónicos fantasmas à procura Do que não fomos, do que não seremos Perfilados de medo, sem mais voz, O coração nos dentes oprimido, Os loucos, os fantasmas somos nós Rebanho pelo medo perseguido Já vivemos tão juntos e tão sós Que da vida perdemos o sentido Alexandre O'Neill
«Tu vais e vens Mas dentro de limites Fixados por uma lei Que não chega a ser tua Nós temos em comum A experiência do muro.» «Não temos margens, na verdade, Nem tu nem eu» Guillevic «O sangue derrama-se facilmente Basta-lhe apenas uma abertura. O sangue de um morto por acidente Não é o mesmo, na rua, Que o de um morto pela liberdade Derramado na mesma rua, Tem cada qual um modo particular De ser vermelho e de gritar» Guillevic «Era já tempo de um outro tempo E a poesia Convocava os seus soldados E nos fuzis da imaginação Se abriram as baionetas da verdade» Mia Couto
«Um espelho tão grande quanto essa multidão; um caleidoscópio dotado de consciência, que, a cada um de seus movimentos, representa a vida múltipla e a graça movediça de todos os elementos da vida. É um eu insaciável do não-eu, que, a cada instante, o traduz e o exprime em imagens mais vivas que a própria vida, sempre instável e fugidia.» Baudelaire, Charles
Só. Mas quem diz só? Quem diz essa palavra Da cor da maldição? Não faças confusão Aquele que vai só Leva os outros consigo. Por eles desespera De com eles esperar. Guillevic
Imagine Imagine there's no heaven It's easy if you try No hell below us Above us only sky Imagine all the people Living for today... Imagine there's no countries It isn't hard to do Nothing to kill or die for And no religion too Imagine all the people Living life in peace... You may say I'm a dreamer But I'm not the only one I hope someday you'll join us And the world will be as one Imagine no possessions I wonder if you can No need for greed or hunger A brotherhood of man Imagine all the people Sharing all the world... You may say I'm a dreamer But I'm not the only one I hope someday you'll join us And the world will live as one John Lennon