E N D
A madrugada vai chegando ao fim e a gleba ainda não passa de uma vasta sombra uniforme e rasteira a perder-se de vista. As estrelas que persistem brilhando no céu vão se consumindo à proporção que aumenta o fulgor da aurora. Tudo ainda parece dormir em descanso da labuta anterior. O ambiente é solitário e repleto de mistérios.
Apenas a brisa incansável espalha a neblina por toda a extensão da campina contígua e esporádicos relâmpagos dão a impressão de rasgar o firmamento, localmente, exibindo finos cirros como atavio das alturas. Tudo se confunde com o negrume meio clareando. Não vejo a alegria das cores. Não. Vejo sim. Vejo algo tomando um grau esverdeado, um verde querendo despertar!...
A gleba continua em mutação como querendo dar-se a conhecer. Uma sonoridade, pouco a pouco, vai tomando conta do espaço. Pios, zunidos, trinados, urros... A vida, quase todas as espécies, entusiasmada naturalmente com o alvorecer! O dia raiando total. Céu nublado, com partes límpidas para o nascente, fulgurantes.
A mata, eis agora, aspecto mais vivo. Verdíssima a boiar das entranhas da terra. O sol, paulatino, ilumina suas paragens revelando os recônditos tal um noivo a despir afável e paciente a veste nupcial da amada para a comunhão do amor. Ei-la: virgem, fértil e bela! Sua beleza e fragilidade tomam conta de meu ser. Agitam-me e agiganto-me.
É indescritível o que sinto, algo assim como um desejo profundo de possuí-la e protegê-la dos perigos que a rodeiam. Mas só posso admirá-la, limitado pela minha insignificância.
Reproduzir e multiplicar. Aumentar, engrandecer e enriquecer. Amazônia, biodiversa, o ninho da natureza. Árvores gigantescas, faceiras e cobiçadas, umas empencadas de frutos, outras de cachos de flores, parecem disputar o cetro da beleza. Mas qual a mais bela, a Itaúba ou o Marupá? A Andiroba? A Copaíba? A Munguba? Afinal, qual dentre todas a mais bela?... A Maçaranduba? O Acapu? Inúmeras outras, cada qual a mais encantadora e talentosa que a outra.
Tudo fica em silêncio de repente. Um vazio dentro da vida silvestre. Nada se ouve. Nem mesmo o ruído de folhas caindo. Até o vento, que saçaricava entre as folhagens, alegrando o ambiente, agora sopra manso... Um som singelo, quase imperceptível. Inebriante. Sim, ouço uma melodia paresque sair do meio do Castanheiro...
É ele! Ele chegou! É a hora dele. Sim, o príncipe da floresta começou a cantar, mas não o vejo. Está entre as folhagens da Sapucaia ou, quem sabe, do Pau-mulato. Não há ser que não emudeça para escutar seu canto. Os nervos em tensão relaxam-se. A frustração murcha e a esperança floresce. A alegria cresce.
O Paricá, mesmo por um instante, deseja ser seu lugar de pouso. O Pequiá impressiona o Mogno na ousadia de querer vê-lo. A Catuaba expulsa o papagaio de seu melhor ramo, para atraí-lo. O Angelim observa a Macacaúba gesticular ao vento que voltou a soprar finamente: - Psssiu, não farfalha minhas folhas, podes interrompê-lo!... Sim, todos atentos. Logo mais todos o acompanham. A suavidade dos cantos passa a algazarra, uma algazarra livre e feliz.
Ouve-se um barulho ensurdecedor próximo. Um estampido. Calou-se a mata outra vez. Um tiro. Espanto. Todos se entreolham apreensivos. Silêncio sepulcral. O que foi?... Um homem!... O quê?...Um homem! Um homem? Sim, um homem!
Uma agitação abunda mormente. Os animais, da cutia ao maracajá, do japiim à arara, da anta ao macaco, do besouro à borboleta, enfim, todos, em pânico, dispersam-se desordenados à procura de outro refúgio. A mata torna-se um pandemônio à procura de salvação. Este já não mais oferece segurança, assim como aconteceu com o primeiro, com o segundo, o terceiro... E embrenham-se mais e mais no âmago da selva. Selva?
Permanecem os vegetais a revelar a tristeza em suas expressões de folhas murchando. Até o vento parece que fugiu. Mas o que foi? O uirapuru foi arrebatado de um galho do Mariçarro por um chumbo perdido. Jaz no chão seu frágil corpinho, penas ensanguentadas e peito para cima como a reverenciar a lamúria das árvores! Mataram o Príncipe! O Príncipe da floresta foi morto! Morreu o Príncipe da Amazônia! Amazônia?...
Passa o alvoroço. A vida normal retorna ao lugar. Vida normal? Há alguma coisa estranha. O ambiente não é mais o mesmo. Ouvem-se os gemidos das folhas e galhos sob os pés do Homem que, carregando dentro de si o fardo da civilização tecnológica, avalia, soma, multiplica, divide, diminui e substitui o natural por obras de sua concepção, sacrificando a vida e cultuando o lucro da morte.
Sinto-me enredado por esse processo de transformação que, sem o calor das emoções, já me confunde com uma máquina, pois não reajo, deixo tudo acontecer, faço parte do sistema que me sufoca. Meu Deus, ajuda-me...
O vento voltou a soprar suavemente no rincão. As árvores já saçaricam de novo, mas sua alegria é de despedida, de fim próximo. Cada vez mais perto estão os roncos horripilantes das motosserras, dos tratores, dos caminhões... A virgem lamenta e nada posso fazer. Nada posso fazer?Eliezer de Oliveira Martins