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O necessário e o essencial. Jornalista: Marcos Rolim.
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O necessário e o essencial Jornalista: Marcos Rolim
O Carnaval, por certo, não é necessário. Mas, para muitas pessoas, ele é essencial. Essa constatação me permite afirmar que há um abismo entre o que sabemos necessário e o que temos como essencial. Para os humanos, aliás, aquilo que é o mais importante nunca será definido pelo necessário. Com a palavra "necessário" dispomos sobre as coisas que nos parecem básicas de tal forma que elas se aproximam do que imaginamos ser o nosso direito. O essencial, entretanto, nunca mora nesse "andar térreo".
Ele é projetado por nosso desejo e, por isso, seria melhor descrito como um "não-lugar" a meio caminho entre nossas lembranças e nossas apostas. O essencial é a falta que nos acompanha como uma sombra; uma espécie de mal-estar pelo qual nos descobrimos incompletos e carentes. Há pouco mais de um ano, o psicanalista Contardo Calligaris tratou desse tema em um brilhante depoimento na UFRGS. Para ilustrar suas posições, Contardo contou duas historinhas: primeiro, lembrou que na Índia, durante uma campanha de esterilização em massa, ofereceu-se às pessoas, como "recompensa", a escolha entre uma saca de arroz e um radinho.
Ao que a grande maioria escolheu o radinho. Uma escolha que não guarda relação com a miséria dos atingidos pelo programa, mas que parece reafirmar a liberdade daqueles submetidos a uma intervenção violenta. O outro exemplo lembrado por Contardo foi o de um campo nazista na Polônia, sem sobreviventes, onde os aliados encontraram vários pedacinhos de papel escondidos pelos presos entre as pedras de seus alojamentos. O que eles teriam escrito? Relatos de seu sofrimento? Mensagens para seus parentes? Não. O que havia nos papéis eram poemas.
Alguém poderia perguntar: "Poemas em um campo de concentração? Para que serviriam?" De fato, parece supérfluo redigir poemas diante de câmaras de gás. Mas, possivelmente, essa escolha tenha ajudado os presos a resistir à crueldade que consistia em lhes negar os atributos humanos. O que ocorre, de qualquer maneira, é que precisamos de um sentido para as nossas vidas e devemos inventá-lo, sempre, para além daquilo que signifique a reprodução da vida em si mesma.
Fôssemos, apenas, seres da natureza, não saberíamos o que é a infelicidade, nem estaríamos confrontados com a certeza da morte. Mas além da ordem natural da qual emergimos, criamos muitas outras "ordens": religiosas, cosmológicas, políticas, filosóficas, morais, estéticas, amorosas, familiares etc. Nossa liberdade consiste nessa invenção infinita e é aí que se movimenta o essencial que, volta e meia, parece se insinuar em um carinho, em um verso, em uma canção, ou em quaisquer outras coisas, por mais banais que pareçam, para logo nos escapar novamente.
Retire de alguém essa possibilidade, entretanto, e teremos apenas a lembrança de uma vida digna, ainda que o estritamente necessário esteja atendido. Teoricamente, uma prisão poderia oferecer comida e teto de qualidade; ou saúde e educação. Ninguém em sã consciência, entretanto, optaria por ela, ainda que lhe faltassem todas essas coisas. Talvez, porque sejamos mais propriamente aquilo que sonhamos, afinal. O que torna tudo mais complicado e fascinante; essencial, eu diria.
Música: Vangelis - Secret World Elaborado por: Sérgio S. Oliver ssoliver@terra.com.br Ver Outras Mensagens Reiniciar Sair