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Um olhar cultural sobre o desporto A partir de vários ângulos. Conceito de cultura. Uma criação do homem para nela se criar. Modo de perguntar, dialogar, entender e explicar. Conjunto de sinais do modo como funciona o mundo. Função de esclarecimento do indivíduo,
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Um olhar cultural sobre o desporto A partir de vários ângulos
Conceito de cultura Uma criação do homem para nela se criar. Modo de perguntar, dialogar, entender e explicar. Conjunto de sinais do modo como funciona o mundo. Função de esclarecimento do indivíduo, despertando nele a apetência elementar a ser culto, a interrogar-se, a arrancar-se progressivamente da coisificação de si e a ascender à ontologia.
Conceito de desporto Fenómeno polissémico e realidade polimórfica. Entendimento plural. Conceito representativo, agregador, sintetizador e unificador de dimensões biológicas, físicas, motoras, lúdicas, corporais, técnicas e tácticas, culturais, mentais, espirituais, psicológicas, sociais e afectivas. Acto desportivo tem implícito tudo isso, sem o esgotar. Encerra um sentido abrangente e maior e não redutor e menor como o da expressão ‘educação física’ ou ‘movimento’ ou de outras afins.
Propósito • Criação da forma humana • Da arte de viver • Para uma vida superior • Lugar do sonho e da criação • Palco da sensibilidade • Lugar pedagógico • Acto de cultura e civilização • Conclusão
O que me sustenta é a beleza. (...) Rezo a tudo o que floresce e frutifica. Nada que cante ou que dance me é indiferente. Nada que fira ou destrua me é semelhante. Faiza Hayat
Os professores são como os poetas Têm por ofício configurar a beleza Cuidam da pessoa de fora para aumentar a expressão da pessoa de dentro
Condição humana Templo de luz e razão erguido em cima da natureza Criação do corpo e da alma
Desporto-beleza e poesia Sim, a beleza e a poesia inspiram os professores e todos quantos amam o desporto. São elas que nos congregam aqui nesta hora.
Sem o desporto e outras coisas aparentemente dispensáveis e inúteis a vida não nos chega e não nos satisfaz. Como não somos puras coisas temos necessidade de “coisas” que as coisas não têm.
Criação da forma humana “A coisa mais digna de que se ocupa o homem é a forma humana” (Goethe, 1749-1832)
Formação Destino e trabalho primordial do homem: a sua formação. Nascemos para formarmos a nossa identidade.
Grande missão da Humanidade A formação do Homem, à luz de bitolas humanistas. É a ela que se consagra desde sempre a civilização com as suas instituições e pelos mais diversos meios.
Obrigação indeclinável da sociedade democrática Criar os cidadãos em que repousa a sua legitimidade Ensiná-los a inventar uma vida sempre melhor Facultar-lhes o acesso a bens e competências que permitam viver à altura da sua época
O desporto simboliza e ensina que a gesta da vida se cumpre não com gestos grandiosos, mas com a paciência de treinar todos os dias. “Se não realizarmos este treino diário, perdemos a forma, perdemos a pujança, ficamos incapazes de ganhar a prova” António Sérgio, 1929
Do papel do desporto Convida a procurar uma forma nova e superior Configura um teste ao estado da nossa forma Revela que somos seres em formação
O desporto configura um teste da nossa forma e desafia-nos a melhorá-la constantemente. E nem sempre ficamos contentes com a forma que ele nos revela. O desporto mostra que estamos longe de exibir uma forma consentânea com a ideia de dignidade que Kant (1724-1804) nos atribuiu.
“Aquilo que somos – aquilo que perfaz o ser e o destino do homem – ainda não aconteceu” (São João Evangelista) “Entre o homem das cavernas e o projecto humano há uns seres intermédios que somos precisamente nós” (Konrad Lorenz)
Afisicidade Fase de transição e desmaterialização. Passagem de época: da actividade física para a actividade intelectual É posta em causa a própria condição humana, acarretando a mudança de identidade.
“Comerás o pão ganho com o suor do teu rosto” Modelo de homem estruturado em torno de capacidades motoras e de qualidades volitivas e morais. Apelo ao desporto para desempenhar um papel de compensação e regeneração
Desporto - conjunto de próteses Para uma infinitude de insuficiências e deficiências que nos limitam e apoucam. Para o corpo que temos e somos, “sem cuja satisfação – lembra Savater – não há bem-estar nem bem viver que resistam”.
Da arte de viver O pensamento de Aristóteles sobre a felicidade, sobre a vida boa e correcta e sobre um plano claro da vida
A felicidade está em viver de acordo com as possibilidades, em não fazer uso reduzido e inferior delas. Felicidade em plenitude e em permanência é inatingível. Mas é um impossível necessário. A vida consiste precisamente em vivermos esforçadamente essa impossibilidade.
O desporto quer ser parte da vida boa e correcta Nele as vivências da felicidade são encenadas de uma forma exemplar e única. O desporto oferece um pressentimento e até um índice substancial de concretude da felicidade. Matriz essencial que reveste o desporto com carácter de utopia.
Desporto somente alcança um entendimento substantivo, enfatizando-o e perspectivando-o à luz do princípio aristotélico da acção correcta, credenciadora de vida boa e feliz. Elemento e oportunidade significativa da consumação humanizante da tarefa de viver, é constituinte da arte da vida.
Renovação do entendimento e da missão do desporto Substituição do princípio da utilidade pelo princípio da felicidade “O máximo que podemos obter seja do que for é a alegria” (Fernando Savater)
Desporto produz um valor social, mas o critério final de avaliação não é a utilidade, é sim o teor da felicidade experimentada na sua prática e consumo.
Gratificação máxima do desporto Estar ao serviço da alegria e do prazer de viver Ser um «sim» espontâneo à vida que nos jorra por dentro Um «sim» ao que somos, ao que sentimos ser.
Assimilado o princípio da utilidade, o desporto chama agora para lugar central o ideal da felicidade. Assume o princípio da vida; inclui-se numa filosofia exaltante e redentora da vida, à qual tudo o mais se subordina.
“A sabedoria de um homem livre não se prende à meditação sobre a morte, mas sim sobre a vida.” Espinosa (1632-1677) “Talvez o homem seja mau porque, durante toda a vida, está à espera de morrer; e assim morre mil vezes na morte dos outros e das coisas” Duvert Penso que só é bom quem sente uma antipatia activa pela morte” Fernando Savater
Conjuntura biófila no pensamento ocidental Elevação da vida à posição de imortalidade, de referência última e de bem supremo Enaltecimento dos estilos de vida activa
“Ser-se humano (…) consiste principalmente em ter relações com outros seres humanos”. “A vida humana boa é vida boa entre seres humanos ou, caso contrário, pode ser que seja ainda vida, mas não será nem boa nem humana”. Fernando Savater
“A humanidade é algo que depende em boa medida do que fazemos uns aos outros”. “Não há humanidade sem aprendizagem cultural”, sem aprendizagem do trato humano, dos seus significantes e significados. Fernando Savater
Desporto Cultura de relações e condutas humanas Códice de normas de trato humano, duramente postas à prova no jogo e na competição
Desporto Domínio de realização de sentidos sob a forma de vivências motoras Contrapõe-se ao emagrecimento da experiência e ao engordar da aparência
Estamos no “último estágio de uma sociedade de operários”. “É perfeitamente possível que a era moderna (...) venha a terminar na passividade mais mortal e estéril que a história jamais conheceu”. Somos “uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única actividade que lhes resta”. (Hannah Arendt)
Desporto contrapõe-se a este cenário com a oferta de experiências variadas e gradativas, de natureza directa, obviando assim à crescente desconsideração do corpo
Para uma vida superior Quando estamos de férias apercebemo-nos da inteira razão dos pensadores que afirmam que as pessoas, em regra, vivem abaixo das suas possibilidades.
Uso inferior e reduzido de possibilidades não se fica pelas funções vitais. Somos passivos e acomodados em excesso; não nos mexemos e corremos atrás da vida e da sua exaltação tanto quanto é possível.
No desporto temos consciência desse facto e tomamos isso como um repto plasmado no lema olímpico. Este sugere que a felicidade é expressão da performance da vida, podendo ser colocada na dependência do modo bem sucedido de vivermos no nível cimeiro das nossas possibilidades.
A melhoria da vida e do homem implica tomar consciência de que vivemos aquém do que podemos. Na longa caminhada da civilização aprendemos a cuidar dos mortos, inventamos o purgatório para os redimir e fazer chegar ao paraíso. É agora altura de reinventar os vivos.
Desporto Domínio da técnica, da estética e tecnologias corporais, destinado a sublimar os instintos e a quebrar as grilhetas das limitações. A dar asas ao nosso corpo, para que os sonhos, desejos e aspirações, os actos e os gestos se soltem e voem em direcção ao belo e ao alto.
No desporto Continuaremos a aprender que o humano é limitado no plano físico, mas ilimitado no plano ético, estético, espiritual e racional. Ilimitado é o divino. A humanização consiste na aproximação ao divino e o desporto veio com esse fim.
Lugar do sonho e da criação O desporto fala-nos da entrega a causas e ideais, de normas e regras, de exigências e desafios, de sacrifício e disciplina, isto é, de valores decadentes.
O desporto Liberta do medo da própria sombra, encaminha para o reencontro connosco e os outros e impede-nos de fugirmos da nossa imagem, particularmente se ela é fonte de perturbação. Cada um de nós pratica-o iluminado pela saudade do que deixou para trás ou do que almeja vir a ser.
Desporto Funda-se e alimenta-se na necessidade de viver lúcida e conscientemente, de enfrentar a realidade sem sofismas, sobretudo quando ela é desagradável. Reforça a nossa auto-estima, por fazer luz sobre pontos fortes e fracos, sucessos e inêxitos, sem jamais nos negarmos.
Desporto Mostra que ninguém é só bondade, virtude e luminosidade. Há sempre certos lugares de sombra, que convidam a arar a jactância e a presunção com a charrua da humildade.
Desporto Desde a antiguidade grega está ligado à arte e a todas as formas de criação. É feito por mãos ávidas de sublimar a força em graça e encanto. Por pernas apostadas em transpor os limites impostos à nossa natureza. Por homens e mulheres movidos pela ânsia de anulação do impossível.
Desporto Não é tanto um acto de expressão do que em nós abunda e sobeja. É sobretudo um acto de criação daquilo que em nós falta. Encena e concretiza, como nenhum outro palco de representação da vida, o sentido genuíno da cultura.