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Virno , Paolo Gramatica de la Multitud. Buenos Aires: Colihue , 2003. Cap. 3 1. A multidão como subjetividade. O conceito de multidão deve ser analisado com entradas multidisciplinares e a subjetividade é uma dessas entradas.
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Virno, PaoloGramatica de laMultitud Buenos Aires: Colihue, 2003
Cap. 31. A multidão como subjetividade • O conceito de multidão deve ser analisado com entradas multidisciplinares e a subjetividade é uma dessas entradas. • A) debate-se aquilo que torna singular a singularidade ou individual a individualidade; • B) a noção de biopolítica; • C) relação com o mundo com a tonalidade emotiva do oportunismo e do cinismo; • D) os falatórios e a sede de novidades.
2. O princípio da individuação • Multidão: ser/muitos como força de existência social e política contraposta à noção unitária de povo como único. • Multidão como rede de indivíduos onde os muitos são singularidades. O ponto decisivo é considerar essas singularidades como pontos de chegada. Portanto, a individuação é resultado de um processo onde o indivíduo não é um átomo solipsista, mas é resultado de progressiva diferenciação sem possibilidade de síntese.
Esse processo exige considerar o que o precede: tem a ver com algo que é comum e indiferenciado. As singularidades têm um insumo não individual ou pré-individual. • As singularidades têm suas raízes naquilo que lhes é oposto, o ponto final que provém do governo, do universal, do pré-individual
Em que consiste o pré-individual que está na base da individuação? As respostas são muitas, mas possíveis. • A)pré-individual é a base biológica da espécie e suas sensações e capacidades perceptivas, embora sem singularidades, • B) pré-individual é a lógica comum a uma comunidade: a lógica que é de todos e de ninguém, diferenciando-se da percepção sensível da espécie, a língua é um âmbito pré-individual em cujo interior habita o processo de individuação. A ontogênese ( fase de desenvolvimento do ser vivo singular) consiste na passagem da linguagem como experiência pública ou interpsíquicaàlinguagem como experiência sungularizante é intrapsíquica. ( v diferença langue/parole.
C) pré-individual é a relação de produção dominante como conjunto de forças produtivas: general intelect como intelecto geral, objetivo, extrínseco. • ( v. Gilbert Simondon: A individuação psíquica e coletiva 89)
2 teses propostas por Simondon: • 1) a individuação não é jamais completa e o pré-individual não se traduz completamente em singularidade, portanto, o sujeito está sempre entre elementos pré-individuais e individuais: o sujeito é unidade e universalidade anônima. • Na convivência do indivíduo com as características da espécie, com a linguagem nativa, com o general intellect é necessário reconhecer que esta convivência não é pacífica e dá lugar a várias formas de crises: o sujeito está em um capo de batalha onde se encontram o eu e o mundo. A relação entre o individual e o pré-individual está mediada pelos afetos.
A relação nem sempre harmônica entre o homem singular e aspectos pré-individuais e os aspectos singularizados do sujeito concerne ao vínculo entre os muitos e o general intellect. A Escola de Frankfut sustentou que a infelicidade deriva da implicação entre o homem singular e as forças produtivas universais. Mas esse idéia é equivocada: a infelicidade e a insegurança não
derivam da separação entre existência individual e potências pré-individuais, mas do seu forte entrelaçamento, sobretudo quando se manifesta como desarmonia e crise. • 2) a vida em grupo não é aquela onde se atenuam as marcas do indivíduo singular, mas o terreno de uma individuação nova, mais radical: a vida coletiva busca afinar, harmonizar a própria singularidade. Só na coletividade, a percepção, a língua, as forças produtivas têm condição de aparecer como produtivas e como aspectos de uma experiência individual.
Esta tese permite compreender melhor a oposição povo/multidão. À medida em que a experiência coletiva da multidão não debilita, mas radicaliza o processo de individuação, fica excluída, em princípio, a possibilidade de que tal experiência possa extrapolar um traço homogêneo, fica excluído que se possa “delegar” ou “transferir” para o soberano qualquer coisa.
O coletivo da multidão fundamenta a possibilidade de uma democracia não representativa: definida como individuação do pré-individual histórico –social como a ciência, o saber, a cooperação produtiva, o general intellect. • Os muitos persistem como muitos sem aspirar à unidade estatal (v pg 82) porque: 1) enquanto singularidades individuais têm em seus ombros a unidade/universal própria das diversas formas de vida pré-individual 2) em sua ação coletiva acentuam e continuam o processo de individuação. Esse conceito é fundamental para entender a subjetividade da multidão contemporânea.
O indivíduo social: No Fragmento sobre as máquinas (Marx) apresenta um conceito que, parece fundamental para compreender a subjetividade da multidão contemporânea. Conceito que se cruza com as teses de Simondon sobre o cruzamento entre realidade pré-individual e singularidade. O indivíduo é social porque nele está presente o intelecto público (general intellect).
O indivíduo social é uma unidade de contrários, um oxímoro: o social tem aqui o sentido do pré-individual e o indivíduo é o resultado último do processo de individuação. Considerando que por pré-individual é preciso entender a percepção sensível, a língua, as forças produtivas, se poderia dizer que o indivíduo social é o indivíduo que exibe a própria ontogênese, a própria formação com seus diversos extratos ou elementos constitutivos. Pode-se nomear multidão o conjunto de indivíduos sociais em uma teoria da individuação.
Um conceito equivocado: a biopolítica • Nos anos 70 em curso do Collège de France, Foucault introduz o conceito de biopolítica , dedicado às transformações do conceito de povoamento que surgiu no final do séc. 18 e início do 19. Para Foucault, é nesse momento que a vida enquanto tal como simples processo biológico, começa a ser administrada politicamente.
Cabe perguntar como e por que a vida irrompe na cena pública, de que modo e por que o Estado a regula e a governa? • Parece que para compreender o núcleo do conceito de biopolítica, é preciso partir de conceito distinto e mais complexo do ponto de vista filosófico: o conceito de força de trabalho.
Que é força de trabalho? É potência para produzir, faculdade, capacidade, sem preservar um que residem no corpo tempo específico de atividade laboral. • Conforme Marx, força de trabalho é o conjunto de todas as aptidões físicas e intelectuais que residem na corporalidade.
A relação capitalista de produção está baseada na diferença entre força de trabalho e trabalho efetivo: força de trabalho é pura potência que tem algo de não real, não presente e esse elemento não presente é o que está sujeito à oferta e demanda. O capitalista compra a faculdade de produzir: depois da compra pode empregar essa força à sua vontade e converter em ato o que está em potência: aqui está a gênese da “mais valia”.
Esta potência se transforma, no capitalismo, em mercadoria e assume uma forma pragmática e empírica. • As características da força de trabalho como potência que se transforma em mercadoria é a premissa da biopolítica: o que se vende não está separado do corpo vivo do trabalhador. • Para o capitalista interessa esse corpo, porque é onde se localiza a potência ( dynamis) e o corpo vivo se converte em objeto.
A vida se coloca no centro da política porque o que está em jogo é a força de trabalho imaterial que, em si mesma, não está presente: por isso é lícito falar de biopolítica. • Corpo como simulacro de trabalho não objetivado: daí a necessidade de controle do Estado, porque o que está em jogo é a potência de trabalho. Portanto, biopolítica é efeito que relaciona compra e venda de força de trabalho como mercadoria. Força de trabalho não é um nome próprio, mas um substantivo comum.
As tonalidades emotivas da multidão • Sem se referirem a propensões psicológicas, essas tonalidades referem-se aos modos de ser e sentir que são comuns aos mais diversos contextos da experiência: trabalho, ócio, afetos, política, etc. • A situação emotiva, mais do que ubiqua, é sempre ambivalente: pode ser resignada ou crítica.
A situação emotiva da multidão pósfordista aparece sujeita a manifestações diversas e opostas: se manifesta como maus sentimentos: oportunismo, cinismo, desintegração social, inesgotáveis abjurações, alegre submissão, mas é preciso um afastamento desses maus sentimentos até o núcleo central que é fundamental.
A situação emotiva da multidão pós-fordista está caracterizada pela coincidência entre estrutura e superestrutura, mudanças revolucionárias no processo de trabalho, tecnologias e emoções, desenvolvimento material e cultura. Daí exigir-se do trabalhador a flexibilidade que o torna capaz de adaptar-se a bruscas mudanças.
A empresa pósfordista usufrui do hábito de não ter hábitos e essa competência tem como consequência a precariedade e a variabilidade. Uma socialização que se adquire, sobretudo, fora do trabalho, extralaboral. São os shocks urbanos de que falava W. Benjamin. Nova versão do nuhilismo ( Simmel e Heidegger): hábito de não ter hábitos entre na produção e se torna requisito profissional
Apenas aquele que adquiriu certa prática de aleatória mutabilidade nas formas da vida urbana sabe como comportar-se nas fábricas do “just in time”. Não se pode falar de “modernização” porque a inovação se dá com periodicidade cada vez mais curta e em uma cena que se caracteriza pela alteração, pelo aleatório, pelo anonimato.
Nesse cenário se manifestam o cinismo e o oportunismo que são necessariamente inconvenientes. • O oportunismo tem suas raízes em uma socialização extralaboral marcada por mudanças abruptas: está em questão uma sensibilidade agudizada pelas oportunidades cambiantes.
Na produção pós-fordista adquire um valor técnico: é uma reação cognitiva e comportamental da multidão contemporânea onde a praxis apresenta alto grau de indeterminação. O processo laboral é invadido por uma ”ação comunicativa” que não se identifica com a ação instrumental. • O oportunismo constitui hoje um recurso indispensável em qualquer tipo de trabalho.
Cinismo: está em conexão com a instabilidade. Na base do cinismo contemporâneo estão as convenções com regras estabelecidas, mas que se sabe, sem fundamento, porque são convenções mutáveis.
Relação cinismo/general intellect • O cinismo é um modo de reação do general intellect, sem ser o único porque está em questão a ambivalência da situação emotiva. • Detalhando: o general intellect é o saber social transformado em força produtiva, é o conjunto de paradigmas epistêmicos e conceitos que regem a comunicação social e as formas de vida. O general intellect se distingue das abstrações
reais típicas da modernidade estabelecidas sobre o princípio de equivalência que era o pressuposto para heterogêneas possibilidades operativas. Os códigos e paradigmas técnico-científicos se apresentam como “força produtiva imediata” ou seja como princípios construtivos. Nada equiparam, mas funcionam como premissa para toda classe de ações.
A concepção de que o saber abstrato ordena as relações sociais em lugar do intercâmbio de equivalentes se reflete na figura contemporânea do cínico. Por que? Porque o princípio de equivalência constitui a base, talvez contraditória, para ideologias igualitárias que propunham o ideal de um reconhecimento recíproco sem restrições, inclusive de uma comunicação linguística universal.
Ao contrário, o general intellect enquanto premissa de praxis social não oferece qualquer unidade mediada para uma equiparação. O cínico renuncia ao diálogo e à busca de um fundamento intersubjetivo da sua praxis. A quebra do princípio de equivalência ligado ao valor da mercadoria está evidente no comportamento do cínico como abandono da instância de equivalência.
O cínico se afirma pela multiplicação ( e fluidificação) de hierarquias e diferenças, que era uma das operações que parecia comportar a sobrevivência da centralidade do saber na produção.
O oportunismo e o cinismo são, sem dúvida, maus sentimentos, porém, é licito propor a hipótese de que cada conflito ou protesto da multidão deitará sua raízes no mesmo modo de ser que se manifesta através dessas modalidades desagradáveis. Onúcleo central da situação emotiva contemporânea suscetível de manifestações distintas consiste em um adestramento para aceitar a dimensão
do possível, enquanto possível. Aquela submissão (domesticação) e esta proximidade da qual derivam as formas atuais do oportunismo e do cinismo constituem indelével signo distintivo da multidão.
O falatório e a avidez de novidades • O falatório não tem estrutura óssea e é indiferente aos conteúdos destilados de modo contagioso e proliferante e a avidez de novidades supõe o uso do novo falatório enquanto novo. • Esses dois pontos são característicos das multidão.
O falatório tem a ver com a multidão e a linguagem verbal, a avidez por novidades com certas virtudes epistemológicas da multidão, considerando-se uma epistemologia espontânea. • O falatório e a curiosidade foram analisados por Heidegger no Ser e o Tempo como manifestações da vida inautêntica pelo nivelamento conformista entre sentir e compreender. ( predomina o pronome “se”: se diz,se sabe, etc
Segundo Simondon é o pré-individual que domina a cena inibindo o indivíduo. É o sujeito sem rosto da comunicação midiática. • Ao contrário, pertencer ao mundo implica em um compromisso pragmático de praxis adaptativa. Para Heidegger, a vida autêntica encontra expressão no trabalho. Segundo Heidegger, essa relação fundamental com o mundo está atravessada pelo falatório e pela curiosidade.
Quem fala sem parar e se abandona à curiosidade, não trabalha, está distraído da execução de uma tarefa determinada, suspendeu toda forma seria de ocupar-se. O “se” não é somente anônimo, é também ocioso. O mundo-oficina se transforma em um mundo-espetáculo. • Éo caso de perguntar se essas atitudes não estão relacionadas com o mundo do trabalho, estariam relacionadas com o tempo livre e com o ócio?
Caberia supor se essas atitudes se transformaram no eixo da produção contemporânea onde domina a ação comunicativa e se valoriza ao máximo a capacidade de desempenho apressado em todas as tarefas através de contínuas inovações?
O falatório detém o papel da comunicação social, sem vínculo e em plena autonomia. • Autonomia de objetivos predeterminados, de empregos adequados, da obrigação de reproduzir fielmente a realidade,. No falatório se dissolve a correspondência denotativa entre palavras e coisas, não correspondem aos acontecimentos que referem, ao contrário, constituem em si próprios , um acontecimento consistente.
O falatório põe em crise o paradigma referencial: essa crise está na origem dos massmidia. Uma vez emancipado do dever de corresponder ponto por ponto ao mundo não linguístico, os enunciados podem multiplicar-se indefinidamente e esse vazio autoriza a invenção e a experimentação de novos discursos que correspondem à matéria-prima do virtuosismo pósfordista.
O falatório é pós-fordista por ele mesmo: enquanto as palavras determinam fatos, acontecimentos, estado de coisas ( v Austin. • Quando dizer é fazer, 1962) contrariamente àquilo que afirma Heidegger, o falatório não constitui uma experiência pobre, mas concerne diretamente ao trabalho como produção social.
No caso da avidez por novidades, seu sujeito é anônimo como um protagonista inautêntico e, • para Heidegger, também ela se coloca fora do processo de trabalho e se reduz ao vazio do espetáculo. Na curiosidade, os sentido usurpam as prerrogativas do pensamento , são olhos do corpo e não aqueles metafóricos da mente, que observam, fiscalizam, avaliam todos os fenômenos. A ascética teoria (biostheoretikos)
se transforma no afã de saber ou de conhecer do voyeur. ( v confronto Heidegger e Benjamin na obra de arte pgs 103/104) • A curiosidade midiática é apreensão sensorial dos artifícios técnicos reprodutíveis, percepção imediata dos produtos intelectuais, visão corporal de paradigmas científicos: prazer visual com alarde de distração.
Curiosidade dispersiva, falatório sem referentes são atributos da multidão contemporânea: atributos carregados de ambivalência, mas ineludíveis.