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Frédéric Cossuta Elementos para a leitura dos textos filosóficos. IV Função das metáforas nos textos filosóficos. Questões iniciais:. Qual o estatuto filosófico da metáfora? A metáfora mantém um laço mais estreito com o conceito do que a simples oposição entre o abstrato e o concreto?
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Frédéric CossutaElementos para a leitura dos textos filosóficos IV Função das metáforas nos textos filosóficos
Questões iniciais: • Qual o estatuto filosófico da metáfora? • A metáfora mantém um laço mais estreito com o conceito do que a simples oposição entre o abstrato e o concreto? • Ela contribui para a construção ontológica de uma filosofia, com seus exemplos e descrições?
A filosofia teria se constituído em sua forma ocidental pressupondo uma antinomia original entre o esforço de inteligibilidade e o peso concreto da imagem que veicularia a ignorância e a irracionalidade. • Nesse caso, combater o uso poético, místico ou mítico da linguagem consistiria em ‘purificá-la’ da obscuridade. Pois a metáfora romperia a homogeneidade do processo demonstrativo e da representação conceitual.
No entanto, até mesmo em textos extremamente abstratos, como a Ética de Espinosa ou o prefácio da Fenomenologia do espírito de Hegel, encontramos o constante emprego de metáforas (termos com deslocamento de sentido). • Segundo Cossuta, sempre haveria, portanto, algum nível de metaforização, porque a língua necessariamente comporta imagens.
Certos autores, de Aristóteles a Bally, explicam essa impossibilidade do pensamento ‘puro’ por uma deficiência do espírito humano: “A maior imperfeição de que padece nosso espírito é a incapacidade de abstrair completamente”(Bally. Traité de stylistique française. 1951). • Para Jacques Derrida, no entanto, “a oposição da intuição, do conceito, da consciência já não tem pertinência alguma. Esses três valores pertencem à ordem e ao movimento do sentido” (Derrida, J. La mythologie blanche. 1971).
Porém, mesmo em filósofos como Nietzsche ou Bergson, que valorizam a imagem e fazem dela um uso constante, há uma ambigüidade presente: “Nenhuma imagem”, afirma Bergson, “substituirá a intuição da duração” (La pensée et le mouvant, p.185, PUF). • Assim, tanto em filósofos que a valorizam quanto nos que a minimizam, a imagem tem um estatuto filosófico ambíguo.
Porém, é possível explicitar os tipos de imagens, de metáforas, de analogias, para determinar-lhes a função, os efeitos de sentido que produzem no seio da conceitualização na qual devem se inserir.
Definição • As metáforas interrompem a exposição abstrata ou nela insinuam-se para substituí-la por um outro plano de significação caracterizado pelo emprego de imagens, cuja função parece ser a de oferecer um equivalente concreto da análise. • As analogias, comparações, alegorias, mitos, imagens e metáforas propriamente ditas baseiam-se no mesmo princípio e criam interferências no seio da complexidade textual. • O recurso metafórico está profundamente engajado na elaboração filosófica.
Definimos de maneira bastante geral a operação metafórica como uma transferência de propriedades pertencentes a um domínio de referência concreto e de imagens, para o encadeamento textual abstrato dominante. • Essa transferência pode efetuar-se segundo formas variáveis graças à presença de analogias entre os dois planos.
Operações metafóricas • A imagem: fusão do plano concreto com o abstrato, quando eles mantêm uma relação de identidade. Uma substituição identificadora. • A metáfora propriamente dita (sentido gramatical) aproxima por contigüidade elementos supostamente análogos (por exemplo, substituindo-se o termo comparado pelo que compara: “todo ser parece redondo” por “a redondez do ser”).
A analogia é uma operação metafórica baseada na transposição de uma relação (A está para B assim como C está para D). A analogia pressupõe a semelhança de uma relação. Trata-se de uma relação entre relações. • A comparação é uma analogia que funciona sobre apenas dois termos (A é semelhante a B), e a metáfora é uma analogia condensada. (Obs.: distingüir ‘metáfora propriamente dita’ de ‘operação metafórica’.)
O modelo metafórico não apenas transpõe uma relação de um plano para outro, mas todo um sistema de relações pertencente ao domínio concreto-figurado (em Platão, por exemplo, substitui-se as relações existentes entre a mão do artista e seu instrumento para as relações entre a alma e o corpo).
A alegoria personifica a idéia colocando-a em cena através de um desenvolvimento de caráter narrativo. É uma construção, uma montagem no imaginário de elementos emprestados dos domínios práticos, técnicos ou míticos (ex.: Alegoria da caverna, de Platão). • O símbolo condensa concretamente a idéia que ele representa. • A fábula sintetiza, num quadro ou numa cena viva de tipo anedótico ou imaginário, uma construção abstrata explicitada eventualmente por uma ‘moral’.
Funcionamento metafórico • A língua, mesmo no uso mais abstrato que dela se possa fazer em filosofia, utiliza suportes concretos e figurados para designar idéias gerais. São as designações metafóricas latentes. A filosofia se serve de tais designações no seu processo de construção de linguagens. • Elas pressupõem a presença de uma espécie de arquivo ‘inconsciente’ dotado de codificações pré-construídas que se oferecem espontaneamente à escrita filosófica. Chamamos a isso de metáforas gastas, cujo emprego não visa a um efeito específico mas que pode produzir um efeito residual.
Graus de metaforização • Grau zero: a utilização de ‘metáforas gastas’. • Grau um: a reelaboração do uso de metáforas gastas, inclusive por deslocamentos de contextos. Conexões diretas ou justapostas entre um sentido próprio e um sentido figurado (cf. p. 107). • Grau dois: quando marcas específicas delimitam a emergência de novas metáforas, em um amplo espectro que vai desde a imagem à comparação (“o homem é esse nada vazio, essa noite”. Hegel).
Grau três: quando a metaforização é inserida ao mesmo tempo em que o escrito enuncia a natureza da operação e comenta o sentido do seu emprego, como nas seguintes expressões: ‘para fazer uma comparação’, ‘a imagem que convém melhor nesse caso’, ou indica retificações negativas, ou seja, indica limites ao uso de suas metaforizações. • Grau quatro: o texto pode tematizar as regras de uso ou o estatuto da imagem em relação ao conceito. Trata-se de uma metametaforização. Nesse caso, o metafórico se explicita filosoficamente.
Observações: • A emergência metafórica é determinada do interior por uma filosofia dada. • A ocorrência de uma metáfora remete ao conjunto do campo metafórico de uma filosofia. • Em geral os textos se servem dos graus 1 e 2. Os outros empregos, mais raros, são mais interessantes (ex.: Henri Bergson. O pensamento e o movente).
Extensão e densidade • A metáfora pontual: limitada a um termo, freqüentemente um adjetivo. • A metáfora enquadrada: não tem autonomia em relação ao texto é uma espécie de parênteses. Cabe ao leitor operar a transposição. • A metáfora irradiada: uma junção de elementos metafóricos coordenados entre si (como em Hegel, ao ligar pares de opostos que são imagens em substituição a noções abstratas: alto/baixo = claro/escuro = (puro)/fermentação). • A metáfora intrincada: quando o texto estabelece um vaivém entre o registro metafórico e o abstrato.
Densidade metafórica • Trata-se da importância quantitativa do metafórico num determinado texto e da importância qualitativa, a considerar a natureza do que é metaforizado. • As metáforas empregadas em um texto filosófico não são casuais, mas estão profundamente engajadas na construção e no coração da doutrina (sobretudo, evidentemente, quando a reflexão faz uma crítica ao conceito). No entanto, elas se encontram em diferentes níveis e para compreender sua verdadeira função é necessário determinar os critérios de sua importância em cada filosofia.
Como avaliar a importância das metáforas: • Primeiro critério: importância quantitativa. Descobrir correlações significativas entre temas filosóficos e metafóricos. • Segundo critério: que aspecto da análise filosófica é metaforizado. Todos os aspectos são suscetíveis de serem substituídos pela imagem. Trata-se de saber se este aspecto é secundário ou central dentro de uma filosofia.
Terceiro critério: regulação metafórica ou conceitual. Há, em cada texto, uma operação dominante que constitui o suporte fundamental do processo textual: distinções definicionais, construção sobre a cena enunciativa, argumentação, etc. essa dominância, em alguns textos, pode ser efetivada pela metáfora. Nesse caso, há uma integração entre o metafórico e os demais elementos constituintes do texto. Podemos falar aqui de uma regulação metafórica do campo conceitual. Devemos observar quando se passa do campo conceitual ao metafórico, assim como a conexão entre os dois planos.
Quarto critério: delimitação do estatuto filosófico da metáfora. Não podemos abordar a função textual da metáfora sem levar em conta o seu estatuto filosófico no seio de uma filosofia, isto é, como uma filosofia compreende e avalia o uso de suas metáforas. O uso das metáforas nunca é neutro, mas filosoficamente determinado.
Significação geral da metáfora filosófica • A metáfora tem um papel estrutural no interior do discurso filosófico, quer este se construa tentando dominá-la, quer ela seja o centro gerador do texto. • Nesses dois tipos de uso, a metáfora constitui uma fonte de tensão interna na filosofia, fator de criação que reduz os planos de expressão, mas também risco de: a) desintegração do texto, ameaçado pela incoerência verbal; b) pelo retorno ao silêncio. • O primeiro risco decorre de que a metáfora poderá introduzir no texto aquilo contra o qual ele luta: a perda de sentido.
Pois a lógica da metáfora provém do simbólico, abre um mundo de correspondências e de analogias, enquanto a conceitualidade demonstrativa afasta a polissemia e as demonstrações vagas. Assim, a metáfora prolifera sobre si mesma, cada imagem engendra outras e espalha-se no texto. Essa profusão corre o risco de interromper a cadeia argumentativa e produzir efeitos não desejados no leitor. A construção de equivalências imprecisas podem gerar contradições ou imprecisões. Os filósofos tentam minimizar este risco através de procedimentos de integração que submetem as imagens à construção de teses.
A filosofia tem assim, um dilema: ou controlar a metáfora – o que poderia levar à pretensão de sua extinção – ou aceitá-la, correndo o risco de ver o campo conceitual se dissolver. • Trata-se, portanto, de tentar captar a dinâmica criativa da metáfora, reprimindo ao mesmo tempo seus efeitos perversos através de uma explicitação teórica do seu uso no interior de uma filosofia.
A explicitação das regras • Nas desconstruções contemporâneas da metafísica, a metáfora permite ao mesmo tempo desqualificar o discurso abstrato e instaurar uma nova relação entre o ser e o dizer. • Por outro lado, a imagem nunca é pura. Corre o riso de recair em estereótipos. Por isso, necessita da explicitação das regras e do sentido de sua utilização. Nesse caso, o processo metametafórico é indissociável da metaforização. • A visão metafórica do mundo constitui um modo de inteligibilidade do real no qual este é considerado em sua integralidade.
O risco do silêncio • Como foi anteriormente afirmado, a metáfora poderá também correr o risco de se dissolver no silêncio. • Para evitar a contaminação da imagem pelo conceito, os filósofos das ‘filosofias da imagem’ ( em oposição ás ‘filosofias especulativas’) buscam uma forma de expressão que coincida com a experiência inefável. • Pois, nesse caso, as palavras são sempre ‘demais’ e traem tanto quanto traduzem, como se a diferença radical entre o ser e o dizer nunca pudesse ser nivelada. Nessa perspectiva, oscila-se entre a tentação do silêncio e a de uma série de ‘metáforas de metáforas’. • Mas: é possível encolher entre palavras sem pensamento e pensamento sem palavras?
Da metáfora ao poético • Resta encontrar uma forma apropriada de linguagem que permita à mediação figurada estabilizar-se entre o indizível e a degenerescência verbal. Cabe à poesia o temível privilégio de substituir a conceitualidade filosófica que falta: ela asseguraria, para além de todas as ocultações metafísicas, um desvelamento do ser que, aos olhos desses pensadores, se oferecem de forma originária no modo poético. • Nessa ótica, o texto se realiza sobre o fundo de sua própria impossibilidade, e a inclinação poética, profética ou mística pode significar tanto o fim da filosofia quanto a oportunidade de uma renovação.
Metáfora e discurso filosófico • A presença da metáfora no coração da filosofia designa-lhe portanto ao mesmo tempo seus limites. Isso nos conduz a uma propriedade ainda mais fundamental nas relações entre metáforas e conceitos: A metaforização consistiria em um dispositivo através do qual formas expressivas heterogêneas viriam se converter e trocar suas propriedades. Isso não ocorre em filosofias que submetem a metáfora ao esquema lógico-conceitual. Nos outros casos, a metaforização constrói translações analógicas que se entrecruzam e contribuem para a entreexpressividade geral do sistema.
Metáfora e unidade textual • Quer seja mediadora do ser em direção ao discurso, ou do discurso em direção ao ser, ou ainda mediadora entre partes, níveis ou formas do discurso, a metáfora adquire uma importância fundamental para a compreensão do texto filosófico. O seu emprego conduz ao conjunto do campo metafórico de uma filosofia, que é parte importante da sua unidade textual.