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A Cor da Ternura. Geni Guimarães. Autobiografia. “ Mãe, se chover água de Deus, será que sai a minha tinta?” “Credo-em Cruz! Tinta de gente não sai. Se saísse, mas se saísse mesmo, sabe o que ia acontecer?” (A Cor da Ternura)
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A Cor da Ternura Geni Guimarães
Autobiografia • “ Mãe, se chover água de Deus, será que sai a minha tinta?” • “Credo-em Cruz! Tinta de gente não sai. Se saísse, mas se saísse mesmo, sabe o que ia acontecer?” (A Cor da Ternura) • A menina Geni Guimarães é a penúltima filha de uma família de oito irmãos. De origem negra e pobre, a menina percebe, desde muito cedo, o peso da cor e da condição social.
As falas das Personagens • “ – Vem cá. Vou te explicar direitinho. É que a mãe encomendou um nenezinho pra nós. Você já é mocinha, tem dente, pode comer de tudo, não é? Agora nenê não. Daí a mãe tem que guardar o leite pra ele. Entendeu?” (Cecília, uma das irmãs)
As falas das Personagens • “ A mãe não está doente, bobinha. Lembra que a Cecília te contou que ela tinha encomendado nenê? Então. Ele está guardado na barriga dela, por isso que a mãe está gordona. Você não está dormindo comigo? Pois é pra não machucar o nenê.” (Arminda, uma das irmãs)
Oração • “ – Minha Nossa Senhora do oratório da minha mãe, faça que ela não chore, que eu nunca mais vou xingar o nenê de diabo e cocô no meu coração. Se ela parar de gemer, daqui pra frente vou só falar Jesus e doce-de-leite pra ele. Amém.”
O nascimento • “Não achei bonito nem feio. Apenas senti um grande alívio quando me vi descompromissada de chamá-lo de Menino Jesus. Era negro”
Divisão das tarefas • “ Resolveram então ordenar a trabalheira. A Cecília lavaria toda a roupa e vigiaria a Cema. Minha mãe faria as refeições e cuidaria das frescuras do Zezinho. Quem tivesse um tempo de sobra faria a limpeza da casa. Os restos do tempo eram dados a mim, que não dava trabalho. Comida depois, banho depois. Tudo depois de tudo.”
Oração • “ – Nossa Senhora Aparecida, vós que sois mãe como eu, venha ao encontro das minhas orações. Derrama suas bênçãos poderosas sobre a minha filha, devolvendo-lhe a saúde, pelo amor de Deus. Alivia o nosso sofrimento, pra gente poder voltar a ser uma família feliz. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém.”
Pessoas da Família • “ (Minha mãe) Saiu correndo e em segundos voltou. Com ela vieram a Cecília, com o Zezinho no colo, a Cema, a Iraci, a Arminda, o Dirceu e meu pai, ainda com o machado de cortar lenha na mão.”
União da Família • “Todos se acomodaram ao meu redor. Uns sentados na cama, outros ajoelhados em qualquer espaço livre. Ficaram me olhando comer, felizes, sem a menor discrição de silêncio, no exagero da vigília.” Todos riram alto, porque o tempo era de riso. Ri também e, aproveitando o momento de desprendimento, pousei a cabeça no colo da minha mãe”
Amor dividido • “Sua blusa estava toda molhada de leite. O peito dela, cheinho, vazava. Disfarçadamente, passei o dedo indicador no líquido. Levei ao nariz, cheirei. Levei à boca, lambi. Realmente, aquele leite era do Zezinho. Não era o meu leite da minha mãe.”
Os Olhos de Dentro • “ –É. Você não repara no jeito dos outros gostarem. Ou melhor, repara, mas quer que gostar seja do seu modo. Cada um...” • “ – Ele nunca ligou pra mim. Isto eu reparei. Não é mentira.” • “ – E você, algum dia, ligou pra mim?” • “ _ Eu?” • “ _ Eu não sabia. Desculpe.” • “ _ Entendeu agora? Você é que nunca procurou saber direito dos olhos dos outros. Não é destes olhos que eu falo, é dos olhos de dentro.”
Os olhos de Dentro • “Quando eu pergunta de que cor era o céu, me respondiam o óbvio: bonito, grande, azul etc. Não entendiam que eu queria saber do céu de dentro. Eu queria a polpa, que a casca era visível. Por isso resolvi manter contato com as pessoas só em casos de extrema necessidade.”
A Benzedeira • “ – Tem que trazer a menina aqui nove dias seguidos. Está com acompanhamento. O espírito de Zumbi está do lado direito dela. Vou fazer um trabalho especial. Afasto o coisa-ruim e peço a guarda da Menina Izildinha.”
Recado à Benzedeira • “_ Olha, faz favor de dizer pra todo mundo que eu estou muito, mas muito feliz mesmo. Peguei um lindo bicho-de-pé. Fala que eu não estou de mal de ninguém. E que o espírito de Zumbi – fiz o sinal-da-cruz – está me perseguindo e pode até pegar neles. Juro que nunca, nunca me esqueci de ninguém. Quando o espírito mau for embora e a Santa Izildinha chegar, eu aviso. Por enquanto tchau. Dorme com Deus.”
Fuga • “ Vida sem atrativos, comecei a planejar. Mudar-me, sair de casa. Não para longe dos meus pais e irmãos. Mas para uma árvore qualquer, ao lado de um joão-de-barro, ou mesmo para o galinheiro e morar com a nossa galinha garnisé. Poder extravasar. Desmedir”
A Preocupação com a Família • “ Caí em mim, porém. Nas conversas comigo, via a impossibilidade de realizar tal sonho. Como explicar isso para minha mãe e obter a aprovação da família? O mínimo que ia acontecer era novamente aguentar a dona Chica, tomar chás e mais chás. Ver outra vez minha mãe chorando pelos contos e eu atada da cabeça aos pés, doída e sem solução.”
Crendices • “ Pensei na hipótese de ir para a estação-árvore sozinha, mas o saci era terrível. Ele vinha nos redemoinhos, roubava os filhos das mães e sumia com eles. Levava crianças para as montanhas, onde elas eram alimentadas com barro, e, para a sede só tinham gotas de orvalho que rolavam das folhas dos pés de sabugueiro. Dias atrás, tinha dado sumiço em duas: na Cidinha, filha do João Preto Boiadeiro, da fazenda Quebra-Pote, e na Creonice, filha da dona Maria Mulata, quemorava no sítio Das Palmeiras.”
Xingamentos • “Todos começaram a me xingar impiedosamente, exigindo que eu me retirasse. Pus-me a chorar desesperadamente. Boneca depiche, cabelo de bom-bril eram ofensas de rotina” • “- E se no caminho, o Flávio me chamar de negrinha?” • “ _ Não quero saber de encrenca, pelo amor de Deus! Você pega e faz de conta que não escutou nada.” • “Calei-me. Quem era eu para dizer-lhe que já estava cansada de fazer de conta?”
Aparências • “ _ Se a gente for de qualquer jeito, a professora faz o quê? – perguntei.” • “ _ Põe de castigo em cima de dois grãos de milho – respondeu-me ela.” • “ _ Mas a Janete do seu Cardoso vai de ramela no olho e até muco no nariz e...” • “ _ Mas a Janete é branca – respondeu minha mãe antes que eu completasse a frase”.
A Escravidão no Brasilcontada por Nhá Rosária • “ _ ...e só com um risco que fez no papel, libertou todo aquele povaréu da escravidão. Uns saíram dançando e cantando. Outros aleijados por algum sinhô que não foi obedecido, só cantavam. Também bebida teve a rodo, pra quem gostasse e quisesse.” • “_ Quem? – perguntei baixinho para o Lilico, que pegara a história desde o começo.” • “ _ Uma tal de Princesa Isabel. Cala a boca!!” • “_ Vô Rosária, ela era santa?” • “_ Só haveria de ser, filha _ disse meu pai.”
A Escravidão no Brasil contada pela professora • “Hoje comemoramos a libertação dos escravos. Escravos eram negros que vinham da África. Aqui eram forçados a trabalhar, e pelos serviços prestados nada recebiam. Eram amarrados em troncos e espancados às vezes até a morte.”
A Herança • “Por isso que meu pai tinha medo do seu Godói, o administrador, e minha mãe nos ensinava a não brigar com o Flávio. Negro era tudo mole mesmo. Até meu pai, minha mãe...” • Por isso é que eu tinha medo de tudo. O filho puxa o pai, que puxa o avô, que puxou o pai dele, que puxou... E eu consequentemente ali, idiota fazendo parte da linha.”
Conflito Interior • “ A idéia me surgiu quando minha mãe pegou o preparado( tijolos triturados)e com ele se pôs a tirar da panela o carvão grudado no fundo”
Mutilação • “Assim que terminou a arrumação, ela voltou para casa, e eu juntei o pó restante e com ele esfreguei a barriga da perna. Esfreguei, esfreguei e vi que diante de tanta dor era impossível tirar todo o negro da pele.” • “Daí, então, passei o dedo sobre o sangue vermelho, grosso, quente e com ele comecei a escrever pornografias no muro do tanque d’água.”
Os cuidados • “Quando cheguei em casa, minha mãe, ao me ver toda esfolada, deixou os afazeres, foi para o fundo do quintal, apanhou um punhado de rubim e, com a erva, preparou um unguento para minha feridas.”
Desejo de ser professora • “_ Se a gente pelo menos pudesse estudar os filhos...” • “Senti uma pena tão grande do meu velho, que nem pensei para perguntar: • “_ Pai, o que a mulher pode estudar?” • “_ Pode ser costureira, professora...[...]” • “_ Vou ser professora _ falei num sopro.”
O Discurso do Patrão • “_ Não tenho nada com isso, mas vocês de cor são feitos de ferro. O lugar de vocês é dar duro na lavoura. Além de tudo, estudar filho é besteira. Depois eles se casam e a gente mesmo...”
O Discurso do Pai • “_É que eu não estou estudando ela pra mim – disse meu pai. _ É pra ela mesmo.” • “_ Ele pode até ser branco. Mas mais orgulhoso do que eu não pode ser nunca. Uma filha professora ele não vai ter.”
A Cor de Deus • “_Pai, de que cor será que é Deus...” • “_ Ué... Branco – afirmou. [...]” • “_ É que se ele fosse preto, quando ele morresse, o senhor podia ficar no lugar dele. O senhor é tão bom!”
Mulher • “_ Mãe, nasceu um carocinho aqui. Será que é cabeça de prego? Todo dia dá umas pontadinhas...” • “ Ela imediatamente deixou a massa do pão sobre a mesa, lavou as mãos e veio. Levantou minha blusa e apalpou o carroço.” • “ _ Não é cabeça de prego.”
Mulher • “_Mãe, olha... Acho que arrebentou tudo quanto é veia. Me ajuda!” • “Ela abandonou o que fazia, sentou-se na taipa do fogão e meio sem jeito começou a explicar:” • “ _Você virou mulher, besta. Pra todo o mundo é assim. Eu, a Arminda, a Iraci, a Maria, a Cecília, até a Cema passamos por isso.É assim mesmo que acontece.”
Mulher • Mulher, terminado o ginásio. • Mulher, cursando o normal, a caminho do professorado, cumprindo o prometido. • Mulher, se fazendo, sob imposições, buscando forças para ser forte. • Mulher, rindo para esconder o medo da sociedade, da vida, dos deslizes dos passos.
Mulher • Mulher, cuidando da fala, misturando palavras, pronúncias suburbanas aos mil modos de sinônimos rolantes no tagarelar social requintado. • Mulher, jogando cintura, diante das coações e preconceitos. • Mulher, contudo e apesar, a um passo do tesouro: o cartucho de papel.
Rei e princesa • “De novo, meu pai ficou em pé, desatou o nó da gravata e assumiu postura de rei. Para melhor me ouvir, esqueceu a etiqueta, fez conchas com as mãos e envolveu as orelhas.” • “Eu, princesa, entreguei meu certificado ao rei, que o embrulhou no lenço de bolso e passou a carregá-lo como se fosse um vaso de cristal.”
O sapato • “Ele, fingindo brincar de mágico, retirou os sapatos dos pés e nos mostrou: duas bexigas enormes desfiguravam seus calcanhares e algumas escoriações marcaram toda a região nos peitos dos pés”.
O sapato • “_ Perdão, pai.” • “ _ Perdão do quê? Eu é que peço perdão. Imagine só... Esquecer de usar a meia. Já pensou se um dos seus amigos visse? Deus me livre de te envergonhar!” • “_ E que saber de uma coisa? Se precisar, enfio de novo o desgraçado do sapato do Zé no pé, sem meia e tudo, e volto lá pra bater todas aquelas palmas de novo.”
O diploma • “_ O senhor queria alguma coisa, pai?” • “_Estou vendo onde foi que guardei o danado do diploma. Vou dormir com ele debaixo do travesseiro que é pra sonhar sonho bonito.”
A professora preta • “Soou o sinal de entrada e meus pequerruchos entraram barulhentos, agitados.” • “Só uma menina clara, linda, terna, empacou na porta e se pôs a chorar baixinho. Corri para ver se conseguia colocá-la na sala de aula.” • “_ Eu tenho medo de professora preta – disse-me ela, simples e puramente.”
Autobiografia • “Sou, desde ontem da minha infância, bagagem esfolada, curando feridas no arquitetar conteúdo para o cofre dos redutos.” • “Messias dos meus jeitos, sou pastora do meu povo cumprindo prazerosa o direito e o dever de conduzi-lo para lugares de harmonias. Meu porte de arma tenho-o descoberto e limpo entre, em cima, embaixo e no meio do cordel das palavras.”