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Herbert José de Souza (Betinho) (Sociólogo brasileiro) 3/11/1935, Bocaiúva (MG) 9/8/1977, Rio de Janeiro (RJ). Quem foi Herbert José de Souza – Trajetória 03/11/1935: Nasce em Bocaiúva, interior de Minas Gerais, Herbert
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Herbert José de Souza (Betinho) (Sociólogo brasileiro) 3/11/1935, Bocaiúva (MG) 9/8/1977, Rio de Janeiro (RJ)
Quem foi Herbert José de Souza– Trajetória 03/11/1935: Nasce em Bocaiúva, interior de Minas Gerais, Herbert (sem um "r" por erro do escrivão) de Souza, o primeiro filho de Henrique e Maria da Conceição Figueiredo de Souza. 1950 a 1953: Vítima de tuberculose, vive confinado num quarto, nos fundos de sua casa. Fim dos anos 50: Começa a militância na Juventude Estudantil Católica (JEC) e, depois, na Juventude Universitária Católica (JUC). 1962: Aos 27 anos, é um dos fundadores da organização marxista Ação Popular (AP). 1964: Com o golpe militar, exila-se no Uruguai. Volta clandestinamente 1965: Nasce, clandestino, num hospital em São Paulo, o filho Daniel, de seu casamento com Irles Coutinho de Carvalho. 1967: Novo exílio, desta vez na Europa. Retorna, outra vez clandestino, em 1968. 1971: Trabalha com identidade falsa, como operário no ABC paulista. A repressão aumenta e ele parte para o último exílio: primeiro no Chile, depois Panamá, Canadá e, enfim, México. 16/09/79: A anistia política traz de volta ao país, com identidade verdadeira e entrada legal, o "irmão do Henfil". 1981: Cria o Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas), cuja meta é democratizar o acesso à informação. 1986: Exame confirma sua condição de portador do vírus HIV. Funda a Abia, entidade que vira referência na luta por maior controle dos bancos de sangue e contra a discriminação. 04/01/88: Morre o irmão Henfil, aos 43 anos, vítima de Aids.
14/03/88: Morre o irmão Chico Mário, aos 39 anos, de Aids. Betinho se confessa deseperançado e afasta-se da Abia, que passa a ser presidida pelo escritor Herbert Daniel. 09/88: Assume o cargo, sem remuneração, de primeiro defensor do povo do município do Rio de Janeiro. Foi indicado por 11 entidades e empossado pelo prefeito Saturnino Braga. 06/91: Recebe o Prêmio Global 500, da ONU, por sua contribuição em favor da ecologia (na Campanha pela Reforma Agrária), pela criação do Ibase e pela luta para a despoluição da Baia da Guanabara e a preservação da Amazônia. 1991: Monta no Ibase uma equipe para pôr em funcionamento o primeiro servidor do país de acesso à Internet. 06/92: Começa a campanha para que os restaurantes, em vez de jogar comida fora, doem para comunidades carentes. Surge aí o embrião da Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida. 07/92: Participa do Movimento pela Ética na Política, um dos alicerces para a campanha que resultou no impeachment do presidente Fernando Collor. 1993: Surgem em todo o país comitês da Ação da Cidadania, popularizada como "Campanha contra a fome", ou, como ficou mais conhecida, "Campanha do Betinho". A iniciativa chegou a ser tachada de assistencialista por militantes de esquerda. 03/94: Lança a "Campanha do Emprego". Baseada no mapa de mercado do trabalho do IBGE, não alcança o mesmo sucesso da luta contra a fome. 06/04/94: O GLOBO revela que a Abia recebera, quatro anos antes, doação de US$ 40 mil do bicheiro Turcão. A negociação fora intermediada por Nilo Batista, que em 1994 foi empossado governador do Rio. 27/05/94: Recebe o Prêmio Eco 94, como hors-concours, pela campanha contra a fome.
24/08/94: Pronunciamento na ONU, na reunião preparatória para a Conferência Mundial sobre o Desenvolvimento Social. 11/94: Lança a campanha "Natal sem fome", que arrecada, no primeiro ano, 600 toneladas de alimentos. 28/11/95: Toca o sino da paz após a Caminhada pela Paz na Avenida Rio Branco, organizada pelo Movimento Reage Rio. 02/96: Faz a Sapucaí chorar ao sair como destaque da Império Serrano, que levou para a Passarela do Samba o enredo "E verás que um filho teu não foge à luta", sobre sua vida. 11/96: Defende, junto a integrantes do Comitê Olímpico Internacional, o cumprimento da Agenda Social na campanha do Rio para sediar as Olimpíadas de 2004. 05/07/97: Vítima de uma hepatite crônica, diagnosticada em 1994, Betinho é internado na Beneficência Portuguesa. Seu quadro clínico é grave: muito debilitado e sem conseguir se alimentar, o sociólogo sofre de pneumonia bacteriana, infecção oral e insuficiência hepática. 30/07/97: O tratamento não corresponde às expectativas e Betinho pede para voltar para casa. No apartamento, em Botafogo, os médicos montam uma Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) portátil. 08/08/97: Betinho fala com dificuldade e reclama das dores e do desconforto. Seu estado de saúde é grave: falência hepática, constatam os médicos. Pesando apenas 39Kg, Betinho é sedado e medicado com diuréticos. A aplicação do coquetel de medicamentos contra o vírus da Aids é suspensa. Com complicações hepáticas, entra, à noite, em coma induzido. 09/08/97: O infectologista Walber Vieira diz pela manhã que o quadro clínico de Betinho é irreversível. Além da falência hepática, o sociólogo enfrenta complicações renais e hemorragias cutâneas. Seu organismo passa a reter líquido e sua alimentação é através de uma sonda nasogástrica. O médico diz temer que o sociólogo sofra um derrame na pleura. À tarde, Daniel, filho do sociólogo, diz que o quadro clínico do pai não sofreu qualquer alteração. 09/08/97: Às 21h10m, Betinho morre em casa ao lado da mulher e dos filhos
TextosdoBetinho - Frases "Solidariedade, amigos, não se agradece, comemora-se.“ "Não sou otimista babaca, mas otimista ativo.“ " A aids não é mortal, mortais somos todos nós.“ “Não fazer pelos excluídos, mas fazer com os excluídos”. “Miséria é imoral. Pobreza é imoral. Talvez seja o maior crime moral que uma sociedade possa cometer.” "Essas crianças estão nas ruas porque, no Brasil, ser pobre é estar condenado à marginalidade. Estão nas ruas porque suas famílias foram destruídas. Estão nas ruas porque nos omitimos. Estão nas ruas, e estão sendo assassinadas." (1992) “O que nos falta é a capacidade de traduzir em proposta aquilo Que ilumina a nossa inteligência e mobiliza nossos corações: a construção de um novo mundo.”(1993) "Muitas reformas se fizeram para dividir a terra, para torná-la de muitos e, quem sabe, até todas as pessoas. Mas isso não aconteceu em todos os lugares. A democracia esbarrou na cerca e se feriu nos seus arames farpados."
“Um país não muda pela sua economia, sua política e nem mesmo sua ciência; muda sim pela sua cultura”. ( 1993 ) “A democratização das nossas sociedades se constrói a partir da democratização das informações, do conhecimento, das mídias, da formulação e debate dos caminhos e dos processos de mudança”. ( 1991 ) "A alma da fome é política!" “O Brasil tem fome de ética e passa fome em conseqüência da falta de ética na política” “O jovem não é o amanhã, ele é o agora”. “Por conter as provas de um jogo injusto é que o orçamento é tão complicado, técnico, oculto, disfarçado, arredio”. “Só a participação cidadã é capaz de mudar o país”. “Em resposta a uma ética da exclusão, estamos todos desafiados a praticar uma ética da solidariedade”. ( 1993 ) “Quando uma sociedade deixa matar crianças é porque começou seu suicídio como sociedade”. ( 1991 )
“A terra e a democracia aqui não se encontram. Negam-se, renegam-se. Por isso, para se chegar à democracia é fundamental abrir a terra, romper essas cercas que excluem e matam, universalizar esse bem, acabar com o absurdo, restabelecer os caminhos fechados, as trilhas cercadas, os rios e lagos apropriados por quem, julgando-se dono do mundo, na verdade o rouba de todos os demais”. ( 1994 ) “A luta pela democracia é que desenvolve o mundo e ela se constrói com e através da comunicação”.(1993 ) “Toda informação é, de certa forma, uma proposta ou elemento de formulação de propostas. É matéria-prima fundamental da ação política e, portanto, do trabalho cotidiano dos movimentos populares”.( 1990 ) “É preciso olhar a propriedade da terra com o olhar da democracia, com o olhar da vida, e não com o olhar da cobiça, da cerca, da violência”...( 1994 ) “É importante ver, com os dois olhos, os dois lados - para mudar uma única realidade, a que temos”. ( 1997 )
“No Brasil não existia o controle do sangue: a Aids era desconhecida. Ele não existia também para outras doenças. Assistimos ao comércio de sangue, uma irresponsabilidade total. Neste sentido, a Aids salvou o sangue”. “Não podemos aceitar a teoria de que se o pé é grande e o sapato, pequeno, devemos cortar o pé. Temos de trocar de sapato”.( 1995 ) “Para nascer um novo Brasil, humano, solidário, democrático, é fundamental que uma nova cultura se estabeleça, que uma nova economia se implante e que um novo poder expresse a sociedade democrática e a democracia no Estado”. “Solidariedade a gente não agradece, se alegra”. “O desenvolvimento humano só existirá se a sociedade civil afirmar cinco pontos fundamentais: igualdade, diversidade, participação, solidariedade e liberdade”. ( 1994 ) “Democracia serve para todos ou não serve para nada”. ( 1995 )
Uma carta para Maria * Herbert de Souza Este texto é para Maria ler depois da minha morte, que, segundo meus cálculos, não deve demorar muito. É uma declaração de amor. Não tenho pressa em morrer, assim como não tenho pressa em terminar esta carta. Vou voltar a ela quantas vezes puder e trabalhar com carinho e cuidado cada palavra. Uma carta para Maria tem que ter todos os cuidados. Não a quero triste, quero fazer dela também um pedaço de vida pela via da lembrança, que é a nossa eternidade. Nos conhecemos nas reuniões da AP (Ação Popular), em 1970, em pleno maoísmo. Havia um clima de sectarismo e medo nada propício para o amor. Antes de me aventurar, andei fazendo umas sondagens e os sinais eram animadores, apesar de misteriosos. Mas tínhamos que começar o namoro de alguma forma. Foi no ônibus da Vila das Belezas, em São Paulo. Saímos em direção ao fim da linha como quem busca um começo. E aí veio o primeiro beijo, sem jeito, espremido, mas gostoso, um beijo público. A barreira da distância estava rompida para dar começo a uma relação que já completou 26 anos! O maoísmo estava na China, nosso amor na São João. Era muito mais forte que qualquer ideologia. Era a vida em nós, tão sacrificada na clandestinidade sem sentido e sem futuro. Fomos viver em um quarto e cozinha, minúsculos, nos fundos de uma casa pobre, perto da Igreja da Penha. No lugar, cabia nossa cama, uma mesinha, coisas de cozinha e nada mais. Mas como fizemos amor naquele tempo... Foi incrível e seguramente nunca tivemos tanto prazer. Tempos de chumbo, de medo, de susto e insegurança. Medo de dia, amor de noite. Assim vivemos por quase um ano. Até que tudo começou a cair. Prisões, torturas, polícia por toda parte, o inferno na nossa frente.
Depois de muita discussão ideológica com os companheiros, partimos para o Chile. Eu ia primeiro, você depois. Havia uma certeza de que nunca mais nos veríamos, era a despedida e a morte do nosso amor tão intenso, belo e curto. Na saída do Brasil, parei na porta de uma casa de discos que tocava Construção, de Chico Buarque. Chorei sem remédio por nós, pelos amigos, pelo país, pela vida. E segui adiante, já sem você ao meu lado. Era um longo caminho até Santiago. Enfim, a liberdade. Mas estava sem você que ficara para fazer algumas tarefas. Cheguei ao Chile em tempos de Allende. Sentava nas praças, olhava todas as pessoas como se fossem normais e irmãos. O Chile era normal. O Brasil era a patologia, a ditadura. O Chile era a alegria, o Brasil, a tragédia. Foi um tempo fantástico e foi só aí que voltei a ter minha identidade, meu nome, meu apelido, minha biografia. Você não sabia com quem havia se casado, não sabia quem era o Betinho e minha história passada no tempo da JEC (Juventude Estudantil Católica), do Jango, do MEC (Ministério da Educação e Cultura), dos primeiros anos do golpe. Foi aí também que, pela primeira vez, meu filho, Daniel, me chamou de Betinho. Para você, tudo começara com a militância maoísta e com a clandestinidade. Meu nome era Wilson e o seu era Marly. No Chile, nos reencontramos com a nossa própria história. De operário e desempregado passei a sociólogo trabalhando com Juan Garcez, assessor de Allende. Idéia do Darcy Ribeiro. Quem resiste ao Darcy? Eu era o assessor do assessor. Passava idéias, através do Garcez, para o presidente do Chile. Era surrealista sair do nada e da clandestinidade para essa função que só você, Garcez, Darcy e eu sabíamos. Algumas idéias fantásticas me vinham à cabeça depois de fazer amor com você. Era como se minha cabeça se abrisse depois do prazer e parisse idéias geniais. Eu as anotava, passava para Garcez e depois as via publicadas nos jornais pela boca de Allende. Foi a primeira vez que vi o amor virar política. Uma manhã ligamos o rádio e escutamos Allende anunciando a traição e dizendo que resistiria até a morte. Assistimos ao bombardeio do Palácio Lá Moneda do alto de nosso edifício. Foi uma visão do inferno. O diabo no ar, a impotência na terra. A morte por cima de nossas cabeças.
A solução era o exílio. Entramos na única embaixada que sobrava, a do Panamá. Cerca de 300 pessoas espremidas como sardinhas e felizes por estarem vivas. Eram 300 vidas emboladas no menor espaço possível, mas com tudo que a vida tem. Inclusive o medo da morte. O que importa é que estávamos juntos. Até que nos vimos no avião voando para a cidade do Panamá. Tínhamos 600 dólares no bolso, o que no Chile era uma fortuna, mas no Panamá não era nada. Chegando ao Panamá, fomos recebidos pelo general Torrijos... Esse era o general que dizia que cada povo tem a aspirina que merece! Nunca entendi a frase, mas estava em vários outdoors pela cidade. Fomos isolados em hotéis do interior por exigência de Kissinger que negociava o Canal do Panamá. Foi como tirar cinco meses de férias políticas no Caribe. Você preocupada, mas calma; eu calmo, mas preocupado. E agora? Já não havia mais lugar na América Latina. A onda das ditaduras começava por toda parte. Restavam a Europa, os Estados Unidos ou o Canadá. Tentamos os Estados Unidos, mas não deu, nem passaporte tínhamos. Através de amigos, fomos para o Canadá. Fizemos uma invasão pacífica, burlando a migração. Sem visto e com muita astúcia. E agora, Maria? Canadá, fevereiro, neve por todo lado, 20 graus abaixo de zero. Sem roupas, sem documentos, sem dinheiro. Só tínhamos o essencial: amigos e solidariedade. Ao longo de nossas vidas, até então em quantas camas havíamos dormido, quantas mudanças forçadas? De novo, o importante e fundamental: juntos e prontos para compartir tudo. Com tudo isso e muita sorte, sempre apareciam os amigos e sempre se manifestava a solidariedade. Em Toronto, a primeira cama foi no convento Scarboro Foreign Mission. Era estreita, mas dormíamos bem juntos para não sobrar pelos cantos. Sem roupa de frio, fomos buscar os capotes dos padres canadenses dez vezes maiores que nós. Até um par de sapatos espanhol achei que me cabia como uma luva e passei a usar esse elegante par de sapatos, mais achado que dado. A segunda cama foi na casa de um casal – ele americano, ela canadense – que nos cedeu a própria cama até que conseguimos um lugar na York University. O casal dormia na sala para nos ceder lugar no quarto. Nunca fiz isso no Brasil por ninguém.
A terceira cama já foi em um belo apartamento de quarto e sala para estudantes graduados no campus da universidade. Compramos uma televisão vagabunda preto-e-branco, um carro usado bem caidaço e foi só esse nosso sonho de consumo. O que tínhamos mesmo eram amigos... A quarta cama foi em um apartamento na 60 Tyndall Ave., onde passamos quatro invernos. Muito papo, estudo, paz. Parecia que a vida estava normal, apesar de tão longe do Brasil. Henfil encurtava as distâncias via telefone, visitas e muitos recortes de jornais brasileiros. A vida corria mais lenta, o inverno não passa rápido. Lá fora a neve, cá dentro nós juntos segurando a mão e a alma um do outro. Bendita Maria. Às vezes, saudade, nostalgia, mas sempre se inventavam coisas: comidas, restaurantes, cinema, amigos e papos sem fim. Exílio com Maria era só meio exílio. Do Canadá rumamos para o México. Lá vivemos uma grande experiência até que a anistia chegou e nos surpreendeu. E agora, o que fazer com o Brasil? Foi um turbilhão de emoções. O sonho virou realidade. Era verdade, o Brasil era nosso de novo. A primeira coisa foi comer tudo que não havíamos comido no exílio: angu com galinha ao molho pardo, quiabo com carne moída, chuchu com maxixe, abóbora, cozido, feijoada. Um festival de saudades culinárias, um reencontro com o Brasil pela boca. Uma das maiores emoções da minha vida foi ver o Henrique surgindo de dentro de você. Emoção sem fim e sem limite que me fez reencontrar a infância. Depois do exílio, nossas vidas pareciam bem normais. Trabalhávamos, viajávamos nas férias, visitávamos os amigos, o Ibase funcionava, até a hemofilia parecia que havia dado uma trégua. Henrique crescia, Daniel aos poucos se reaproximava de mim, já como filho e amigo. Mas, como uma tragédia que vem às cegas e entra pelas nossas vidas, estávamos diante do que nunca esperei: a Aids. Em 1985, surge a notícia da epidemia que atingia homossexuais, drogados e hemofílicos. O pânico foi geral. Eu, é claro, havia entrado nessa. Não bastava ter nascido mineiro, católico, hemofílico, maoísta e meio deficiente físico... Era necessário entrar na onda mundial, na praga do século, mortal, definitiva, sem cura, sem futuro e fatal. E foi aí que você, mais do que nunca, revelou que é capaz de superar a tragédia, sofrendo, mas enfrentando tudo e com um grande carinho e cuidado. A Aids selou um amor mais forte e mais definitivo porque desafia tudo, o medo, a tentação do desespero, o desânimo diante do futuro. Continuar tudo apesar de tudo, o beijo, o carinho e a sensualidade.
Assumi publicamente minha condição de soropositivo e você me acompanhou. Nunca pôs um senão ou um comentário sobre cuidados necessários. Deu a mão e seguiu junto como se fosse metade de mim, inseparável. E foi. Desde os tempos do cólera, da não-esperança, da morte de Henfil e Chico, passando pelas crises que beiravam a morte até o coquetel que reabriu as esperanças. Tempo curto para descrever, mas uma eternidade para se viver. Um dos maiores problemas da Aids é o sexo. Ter relações com todos os cuidados ou não ter? Todos os cuidados são suficientes ou não se devem correr riscos com a pessoa amada? Passamos por todas as fases, desde o sexo com uma e duas camisinhas até sexo nenhum, só carinho. Preferi a segurança total ao mínimo de risco. Parei, paramos e sem dramas, com carências, mas sem dramas, como se fosse normal viver contrariando tudo que aprendemos como homem e mulher, vivendo a sensualidade da música, da boa comida, da literatura, da invenção, dos pequenos prazeres e da paz. Viver é muito mais que fazer sexo. Mas, para se viver isso, é necessário que Maria também sinta assim e seja capaz dessa metamorfose, como foi. Para se falar de uma pessoa com total liberdade, é necessário que uma esteja morta, e eu sei que esse será o meu caso. Irei ao meu enterro sem grandes penas e, principalmente, sem trabalho, carregado. Não tenho curiosidade para saber quando, mas sei que não demora muito. Quero morrer em paz, na cama, sem dor, com Maria ao meu lado e sem muitos amigos, porque a morte não é ocasião para se chorar, mas para celebrar um fim, uma história. Tenho muita pena das pessoas que morrem sozinhas ou mal-acompanhadas, é morrer muitas vezes em uma só. Morrer sem o outro é partir sozinho. O olhar do outro é que te faz viver e descansar em paz. O ideal é que pudesse morrer na minha cama e sem dor, tomando um saquê gelado, um bom vinho português ou uma cerveja gelada. Te amo. Betinho Itatiaia, janeiro de 1997
Carta contra o preconceito Na sexta-feira dia 08/02/92, às 23 horas, decola do Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo, o Vôo da Solidariedade. A bordo do avião, cerca de 100 intelectuais vão levar seu apoio ao povo cubano. Uma das poltronas poderia estar ocupada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, um dos que apóiam o vôo. Mas não está. No lugar do presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), vai uma carta assinada por ele. Um protesto contra a política segregacionista do governo cubano em relação aos doentes da AIDS. Presidente Fidel Castro, Sou do tempo da Revolução Cubana. Defendi e defendo o direito do povo cubano fazer sua revolução e decidir o seu próprio destino sem interferência de inimigos ou amigos.
Defendo para Cuba o que defendo para mim e para o meu próprio povo: liberdade, igualdade, participação, respeito, diversidade e solidariedade. Feita essa introdução, desejo apresentar uma questão e fazer um apelo. A questão é a AIDS. Sou hemofílico de nascimento e soropositivo há quase 10 anos. Sou também presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS desde 1986 e desenvolvo em meu país uma luta constante contra as políticas públicas do governo federal em relação à AIDS. A AIDS, desde o começo, foi apresentada como uma doença incurável e fatal, sem esperança e sem destino a não ser a morte. Essa posição não é correta, não tem base científica e é politicamente equivocada: a AIDS ainda não tem cura, mas poderá ter. A cura da AIDS está a caminho. A França, por exemplo, já se propõe a rever a própria definição da AIDS (SIDA) para doença degenerativa crônica. Essa visão fatalista e anticientífica da AIDS foi responsável pela disseminação de condutas discriminatórias, desumanas e terroristas em relação às vítimas da doença. Muita gente tomou carona na tragédia para expressar todos os seus preconceitos e culpar as vítimas e suas condutas, ao invés de atacar a causa real da doença: o vírus. Conhecendo a tradição humanista e revolucionária de Cuba, sabendo dos avanços de sua medicina, eu esperava que também Cuba se transformasse num exemplo mundial de como enfrentar a AIDS. O que li no Gramma e soube por pessoas que visitaram Cuba, no entanto, constitui para mim um choque: soube que os soropositivos são submetidos a um processo de controle por agentes sanitários, que se caracteriza por uma espécie de vigilância à curta distância para impedir que a pessoa contaminada contamine outras pessoas. Como sabemos que a transmissão do vírus se dá basicamente por via sexual, estaríamos diante do controle da vida sexual dos soropositivos por processos de vigilância que tenho dificuldades de imaginar como seriam feitos, além de discordar frontalmente de tal tipo de controle. Soube, também, que os doentes são levados aos hospitais e internados como doentes de AIDS, separados de suas famílias, do trabalho, de suas atividades.
Para ser franco e direto: os doentes são segregados da sociedade pelo Estado e se transformam em presos políticos da epidemia. Digo políticos, porque não existe nenhuma razão científica, médica, ou de simples bom senso, para se prender doentes de AIDS a fim de prevenir a propagação da epidemia e proteger a saúde pública. Um doente de AIDS é, na verdade, aquele que menos oferece risco de contaminação, porque ele já sabe que pode transmitir, sabe como não transmitir, e, a não ser em casos patológicos, não quer transmitir sua doença a ninguém, muito menos a seus familiares e amigos. Os doentes de AIDS hoje podem passar a maior parte de seu tempo em suas próprias casas ou desenvolvendo atividades úteis, ao invés de se verem presos, segregados, discriminados como seres destinados a esperar a morte no leito da proteção pública. Sou capaz de imaginar uma sociedade, a cubana, onde os soropositivos e os doentes de AIDS recebam uma atenção e um carinho especiais de todos, onde não se sintam discriminados, nem isolados, nem identificados com o perigo mortal para a saúde pública da Nação. Onde os soropositivos trabalhem normalmente e onde os doentes possam também trabalhar, viver, conviver e se confrontar com a morte em meio à solidariedade que se traduz em convívio e não em segregação. Não falo como leigo. Falo como soropositivo que trabalha agora mais do que nunca e que jamais aceitaria ter um agente de saúde seguindo meus passos para verificar se sou um perverso propagador da epidemia. Falo como um soropositivo que vive com a mulher e filho, e que preferiria morrer a ser isolado no melhor hospital público quando os primeiros sinais da doença se instalassem, para esperar a morte incerta e imprevista, o que hoje pode levar até anos para se realizar. Quero também ter o direito de decidir sobre a forma, modo e o tempo de minha morte. A doença não pode ser um pretexto para que se retire de mim o direito à cidadania. Acredito firmemente que essas idéias deveriam ser muito mais desenvolvidas e possíveis em um país como Cuba e não no meu próprio, onde os pacientes de AIDS, na maioria das vezes, morrem sem as menores condições de assistência e ainda sofrem efeitos da propaganda oficial, que prima pelo terrorismo.
Por tudo isso, quando surgiu a proposta dessa viagem a Cuba, que apoio, senti que eu tinha em relação a ela um caráter político e pessoal: como seria tratado em Cuba? Como os milhares de turistas que entram em Cuba sem apresentar os testes de HIV e que, sem saber, por isso mesmo podem se constituir num risco para a saúde pública do país? Eu só poderia entrar em Cuba como um soropositivo publicamente conhecido no Brasil e teria que apresentar meus pontos de vista e principalmente meu apelo: Se ainda existe vigilância organizada sobre os soropositivos, transformem essa relação em programas de educação e confiem na responsabilidade cívica, humana dos cubanos. Se ainda existe segregação dos doentes em hospitais - com a separação de suas famílias - que tudo isso acabe porque é desumano, é inútil, é inaceitável. Que essa viagem de solidariedade produza muitos frutos. Quero enviar junto a essa carta um grande e fraterno abraço para todo o povo cubano, um povo que aprendi a amar e admirar de longe e de perto, quando em 1968 estive representando o Brasil na OLAS (Organização Latino-Americana de Saúde). Agora que o presidente já tem quase o direito de se considerar eterno, gostaria de terminar com uma frase que vai começar uma nova postura nossa diante da AIDS: a AIDS não é mortal, mortais somos todos nós. A AIDS terá cura, e o seu remédio hoje é a solidariedade. Abraços e saudades, Herbert de Souza Presidente da ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS)
Formatação : Airton Ferreri “Homem Sonhador” http://www.homemsonhador.com Brasil * São Paulo - SP 30/06/2006