350 likes | 770 Views
FENOMENOLOGIA COMO POSSIBILIDADE DO PENSAR PERGUNTADOR. FENOMENOLOGIA: REALIDADE X POSSIBILIDADE. I.1. Fenomenologia como realidade: Nós estamos acostumados a representar a Fenomenologia como um movimento filosófico emergente no início do século XX:.
E N D
FENOMENOLOGIA: REALIDADE X POSSIBILIDADE I.1. Fenomenologia como realidade: Nós estamos acostumados a representar a Fenomenologia como um movimento filosófico emergente no início do século XX:
que surgiu com as investigações matemáticas, lógicas, psicológicas, de teoria do conhecimento e de crítica da razão, conduzidas por Edmund Husserl (1859-1938), cujas obras principais apresentam os seguintes títulos: - Filosofia da Aritmética (1891); - Investigações Lógicas (1900/1901); - A idéia da fenomenologia (5 Lições: 1907); - A filosofia como ciência de rigor (1910); - Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica (Volume I em 1913); - Meditações Cartesianas (1931).
que se constituiu como um círculo de círculos de investigadores no trabalho investigativo dos pesquisadores e pensadores de Göttingen e de Freiburg, o qual foi documentado no Jahrbuch für Philosophie und phänomenologische Forschung (Anuário para filosofia e pesquisa fenomenológica) [Principais nomes: J. Daubert, A. Pfänder, T. Lipps, H. Lipps, A. Reinach, Mortiz Geiger, Dietriech von Hildebrand, Hedwig Conrad Martius, E. Stein, A. Koyré, J. Hering, Roman Ingarden, Fritz Kaufmann, Gerda Walter, Hebert Spiegelberg, etc];
que tomou impulso considerável nos trabalhos de Max Scheler (1874-1928), o qual abordou, sobretudo, a fenomenologia da afetividade, dos valores, da ética, da religião, etc; • que irrompeu na ontologia fundamental e no pensamento da história do ser em Martin Heidegger (1889-1976) [Obras completas: cerca de 102 títulos – marco: Ser e Tempo, 1927];
que tornou fecundo o empenho de vários pensadores franceses, como, por exemplo, Merleau-Ponty, Sartre, Levinas; • que se espalhou pelos Países Baixos, pelos Estados Unidos da América, América Latina e que chegou até mesmo à Ásia, na escola fenomenológica de Kioto, no Japão e, aos poucos, foi se constituindo numa grande tendência da filosofia e das ciências contemporâneas;
Trata-se, pois, de um movimento, não de uma escola. Um movimento, que seria constituído como círculo de círculos de investigadores, que têm uma impostação ou atitude investigativa comum, mas que não se estabelece no modo de uma doutrina uniforme. Neste sentido, há várias tendências fenomenológicas, no movimento da fenomenologia. Em todo o caso, é inegável que a fenomenologia está na raiz de um considerável ímpeto de renovação da filosofia e, por conseguinte, das ciências positivas e até mesmo de vários âmbitos de vida e cultura, na primeira metade do século XX.
Esta apreensão da fenomenologia como movimento é correta. Só que, talvez, ela não colha o mais essencial da fenomenologia: ela capta a fenomenologia como uma realidade já dada e constituída positiva e factualmente e não como dinâmica de possibilidade por se constituir;
Sem falar que, certamente, o que aparece a uma constatação historiográfica como a expansão do movimento fenomenológico na superfície da cultura e civilização européia e, por conseguinte, ocidental, e seu encontro com o mundo oriental, talvez não nos deixe ver que a fenomenologia está na raiz mesma das tendências mais profundas e ocultas de nossa época, isto é, do modo de se rever e de, por assim dizer, se re-fundar o sentido da modernidade.
I.2 A fenomenologia como possibilidade: “... O que ela possui de essencial não é ser uma ‘corrente’ filosófica real. Mais elevada do que a realidade está a possibilidade. A compreensão da fenomenologia depende unicamente de se apreendê-la como possibilidade” (Heidegger, Ser e Tempo, p. 70). “A fenomenologia há de ser concebida, segundo sua possibilidade, como não notória e óbvia. Uma possibilidade tem um jeito próprio de se agarrar e de se guardar. Não se apanha uma possibilidade de maneira temática e empreendedoramente. Mas, agarrar uma possibilidade significa: agarrá-la no seu ser e formar-se nele, ou seja, naquilo que, nela, está esboçado como possibilidades” (Heidegger, Ontologia – Hermenêutica da Facticidade, p. 74).
Fenomenologia é, essencialmente, uma possibilidade. Possibilidade não no sentido lógico (o não contraditório), mas no sentido do poder-ser concreto, isto é, que con-cresce na dinâmica da própria liberdade e auto-responsabilização de quem se acha afeiçoado pela fenomenologia. • Nós já sempre estamos e não estamos na fenomenologia como possibilidade concreta. Porque estamos, podemos nos tornar fenomenólogos. Porque não estamos, temos que nos tornar, sempre de novo, uma vez tocados por essa possibilidade.
Ninguém nunca vem a ser fenomenólogo, a não ser num caminho de experiência de busca, em que a fenomenologia se torna um querer todo próprio de indagar e investigar. • Aos poucos, esse querer se torna uma necessidade imperiosa, haurida do mais profundo da própria liberdade. Uma necessidade livre, que molda o ser, o viver, o pensar, o agir, de quem busca, indaga, investiga.
Quando alguém deslancha nessa possibilidade/necessidade, a fenomenologia se torna um gosto de ser, um prazer de viver, uma alegria de pensar, sim, se torna jovialidade de uma práxis (fenomenologia = fenopraxia). • Fenomenologia só é como fáctica, como historial, ou seja, como destinação concreta da existência, em sua dinâmica de liberdade, isto é, de responsabilidade através do trabalho:
“Carece dizer que eu não sou um filósofo. Não penso fazer algo que possa ser, ao menos, comparado a isto. Algo assim não está, absolutamente, nas minhas intenções. Eu simplesmente faço aquilo que devo e que considero necessário. E o faço como posso: não acomodo o meu trabalho filosófico às tarefas culturais de um ‘hoje universal’. E não tenho nem mesmo a tendência de Kierkegaard. Eu trabalho de maneira concretamente fáctica, a partir do meu ‘eu sou’ – da minha proveniência espiritual de fato, do meu milieu, dos meus contextos vitais, daquilo que me é acessível como experiência viva, em que vivo. Esta facticidade, enquanto existenciária, não é um mero ‘cego estar aí’; encontra-se na existência, junto com ela, e isto quer dizer, eu vivo o que ‘eu devo’, do que não se fala. Junto a esta facticidade do ser-assim, junto ao histórico, encrespa-se o existir, quer dizer, eu vivo as obrigações íntimas da minha facticidade, e isto, de modo tão radical quanto o compreendo” (Heidegger, carta a Karl Löwith, de 19 de agosto de 1921).
A fenomenologia não existe como doutrina, mas só como caminho. E caminho só acontece como história. Todo tema de questionamento é, nesse caminho, apenas pretexto para seguir perguntando, submetendo-se às evidências das coisas, num empenho intrépido e jovial de amar a auto-revelação dos fenômenos, revelação que é, sempre, re-velação: desvelamento e velamento, doação e retraimento.
Fenomenologia é atitude de espera do inesperado e de memória agradecida pela doação reveladora do ser: “A espantosa realidade das coisas É minha descoberta de todos os dias. Cada coisa é o que é, E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra E quanto isso me basta” (Fernando Pessoa). • O saber da fenomenologia só pode mesmo ser o saber do não-saber.
“Em primeiro lugar, quem quiser realmente tornar-se filósofo deverá ‘uma vez na vida’ voltar-se para si mesmo e, dentro de si, procurar inverter todas as ciências admitidas até aqui e tentar reconstruí-las. A filosofia – a sabedoria – é de qualquer forma um assunto pessoal do filósofo. Ela deve constituir-se como algo dele, ser a sua sabedoria, seu saber, que, embora se volte para o universal, seja adquirida por ele e a qual ele possa ter condições de justificar desde a origem e em cada uma de suas etapas, apoiando-se em intuições absolutas. A partir do momento em que tomei a decisão de me voltar para esse objetivo, decisão essa que só pode me levar à vida e ao desenvolvimento filosófico, consequentemente, fiz meu voto de pobreza em matéria de conhecimento. Desde então fica claro que será necessário perguntar como poderia encontrar um método que me desse o caminho a seguir para chegar ao saber verdadeiro” (Husserl, Meditações Cartesianas, p. 20). “Pouco saber e muita jovialidade é dada aos mortais” (Hölderlin)
A fenomenologia é um modo “transcendental” de viver, uma fenopráxis da razão, que acontece historialmente desde o dinamismo da mais radical autonomia da liberdade: “Em sua universal auto-referência, a fenomenologia reconhece sua própria função em um possível viver transcendental da humanidade. Ela reconhece as normas absolutas que a partir deste viver poder ser sacadas pelo olhar; mas reconhece também sua estrutura originária, tendencial/teleológica, na direção de uma descoberta destas normas e sua efetuação prática e consciente. Ela se reconhece, então, enquanto função da universal auto-reflexão da humanidade (transcendental), a serviço de uma práxis universal da razão, ou seja, a serviço da tendência que se torna livre pela descoberta, na direção da idéia universal, radicada no infinito, de uma absoluta perfeição ou, o que dá na mesma, na direção da idéia – radicada no infinito – de uma humanidade que, de fato e inteiramente, fosse e vivesse na verdade e na autenticidade” (Husserl, Psicologia Fenomenológica, p. 299).
A fenomenologia é um modo de assumir singularmente as questões universais, que tocam aos homens em sua comunhão e em sua solidão fundamentais. É uma mathesis universalissui generis: “O ‘ser primeiro em si’, que serve de fundamento a tudo o que há de objetivo no mundo, é a intersubjetividade transcendental, a totalidade das mônadas que se unem nas diversas formas de comunidade e comunhão. Mas, no interior de qualquer esfera monádica, e, a título de possibilidade ideal, no interior da esfera monádica imaginável, reaparecem os problemas da realidade contingente, da morte, do destino, o problema da possibilidade de uma vida ‘autenticamente’ humana e tendo um ‘senso’ na acepção mais forte desse termo e, entre esses problemas, os do ‘sentido’ da história e assim por diante, subindo cada vez mais alto.
Podemos dizer que são esses problemas éticos e religiosos, mas postos num terreno onde deve ser colocada toda questão que possa ter um sentido possível para nós. É assim que se realiza a idéia de uma filosofia universal de forma bem diferente daquela representada por Descartes e pelo seu tempo, que foram seduzidos pela idéia da ciência moderna. Ela não se realiza sob a forma de um sistema universal de teoria dedutiva, como se tudo estivesse englobado na unidade de um cálculo. O sentido essencial dessa ciência transformou-se radicalmente. Temos diante de nós um sistema de disciplinas fenomenológicas, do qual a base fundamental não é o axioma ego cogito, mas uma plena, inteira e universal tomada de consciência de si mesmo... O oráculo délfico gnwte seauton adquiriu um novo sentido. A ciência positiva é uma ciência do ser, a qual se perdeu no mundo. É preciso de início perder o mundo pela epoch para reencontra-lo, em seguida, numa tomada de consciência universal de si mesmo. Noli foras ire, disse Santo Agostinho, in te redi, in interiore homine habitat veritas”.
FENOMENOLOGIA COMO PENSAR PERGUNTADOR • A fenomenologia supõe a disposição de aprender a pensar. O aprender, no entanto, se cumpre desde a disponibilidade do desaprender: • “Muitas são as diferenças entre a atitude de aprender e a atitude de estudar. Quem vai estudar quer mais conhecimentos e informações para saber mais, para poder mais, para assegurar-se mais. Quem vai aprender quer esvaziar-se mais e desaprender mais para arriscar-se mais a ser mais. Se não se apostar a vida, não se aprende nada. Quando se estuda, cresce o receituário, isto é, o repertório das receitas; aumentam, em conseqüência, as possibilidades de fazer. Quando se aprende, crescem as possibilidades de ser e realizar-se; aumentam, em conseqüência, as possibilidades de viver e de morrer” (Emmanuel Carneiro Leão).
Aprender é tornar-se capaz de receber o que já sempre nos foi dado: • “Este verdadeiro aprender é, por conseqüência, um tomar muito peculiar, um tomar no qual aquele que toma, toma, no fundo, aquilo que já tem. A este aprender corresponde, também, o ensinar. Ensinar é um dar, um oferecer; no ensinar, não é oferecido o ensinável, mas é dada somente ao aluno a indicação de ele próprio tomar aquilo que já tem. Quando o aluno recebe apenas qualquer coisa de oferecido, não aprende. Aprende, pela primeira vez, quando experimenta aquilo que toma como sendo o que, verdadeiramente, já tem.
O verdadeiro aprender está, pela primeira vez, onde o tomar aquilo que já se tem é um dar a si mesmo e é experimentado enquanto tal. Por isso, ensinar não significa senão deixar os outros aprender, quer dizer, um conduzir mútuo até a aprendizagem. Aprender é mais difícil do que ensinar; assim, somente quem pode aprender verdadeiramente – e somente na medida em que tal consegue – pode verdadeiramente ensinar. O verdadeiro professor diferencia-se do aluno somente porque pode aprender melhor e quer aprender mais autenticamente. Em todo o ensinar é o professor quem mais aprende” (Heidegger, O que é uma coisa?, p. 79-80).
A aprendizagem da fenomenologia consiste, antes de tudo, em aprender a ver. A paixão pelo ver gera, no pensar, a atitude de cuidar de ser pura recepção do que se mostra. O pensamento é desafiado a se ater àquilo que se mostra, ao fenômeno. O seu falar precisa se tornar um dizer, isto é, um deixar e fazer ver o que se mostra em si mesmo e a partir de si mesmo. Precisa se tornar, então, a ressonância e a repercussão do próprio vir à fala do que se evidencia, ou seja, do que emerge, do que vem à luz. Isso significa: ir às coisas mesmas.
“Para mim, um homem que não contempla parece mal estar vivendo; e um filósofo que não cultiva e não pratica contemplação não é digno deste nome: ele não é um filósofo mas um profissional da ciência e, entre os filisteus, o mais filisteu” (Brentano, Carta a Stumpf). “O ensino de Husserl acontecia na forma de um exercício passo a passo do ‘ver’ fenomenológico, que exigia, ao mesmo tempo, um não contar com o uso de conhecimentos filosóficos não examinados, mas também a renúncia a trazer para o diálogo a autoridade dos grandes pensadores...” (Heidegger, à Coisa do pensar, p. 86).
“... Husserl me abriu os olhos...” (Heidegger, Ontologia – Hermenêutica da facticidade, p. 5). “O exercício fenomenológico é mais importante do que ler Hegel” (Heidegger, Seminário de Le Tohr, 1968). “Para mim, trata-se, realmente, de exercitar-se em uma fenomenologia do que é simples e, por isto, não aparece. Através da leitura de livros, ninguém chega ao ‘ver’ fenomenológico... Para mim, trata-se, antes de tudo, de praticar o ‘ver fenomenológico’...” (Heidegger, Cartas a Roger Munier, 16 de abril e 11 de agosto de 1973).
Fenomenologia é o ver simples e singelo do que é simples e singelo: • “O simples guarda na verdade o enigma do que permanece e é grande. De chofre surge inesperado entre os homens e, não obstante, necessita crescer e amadurecer durante longo tempo. No invisível do que é sempre o Mesmo, protege seus dons. O alcance e a envergadura de todas as coisas maduras, que demoram em torno do Caminho, é que instauram mundo (...).
E assim o homem se dissipa e erra sem caminho. Para o dissipado o simples parece uniforme. O uniforme causa tédio e náusea. Os entediados pela náusea só acham monotonia à sua volta. O Simples já se retirou. Sua força silenciosa sucumbiu. • Não há dúvida, diminui rápido o número daqueles que conhecem o Simples, como uma conquista própria de sua propriedade. Mas estes poucos serão por toda parte os que permanecerão” (Heidegger, O caminho do campo).
Fenomenologia é ver com os ouvidos e escutar com visão: “Tão logo nós temos a coisa diante dos olhos e, no coração, o ouvido colado à palavra, vinga o pensar” (Heidegger, Da experiência do pensar).
Fenomenologia é o pensar da experiência e a experiência do pensar: “Poucos são experientes o bastante na diferença entre um objeto de erudição e uma coisa pensada” (Heidegger, Da experiência do pensar).
O devotamento do pensar consiste em perguntar: • “Pôr perguntas; perguntas não são idéias casuais; perguntas também não são os hoje usuais ‘problemas’, que ‘a gente’ apanha do ouvir dizer e do ter lido e decora com o gesto aparente de profundidade de pensamento. Perguntas crescem do confronto com as ‘coisas’. E coisas só estão aí, onde existem olhos”.
Perguntando, o pensamento responde e corresponde ao que o provoca a pensar. • “E hoje? O tempo da filosofia fenomenológica parece ter passado. Ela já vale como algo do passado, que ainda figura historiograficamente ao lado de outras correntes da filosofia. Só que a fenomenologia não é, naquilo que ela tem de mais próprio, uma corrente. Ela é a possibilidade do pensar que, de tempos em tempos, se transforma e que, só por isso, permanece – a saber, a possibilidade do corresponder ao apelo daquilo que se há de pensar. Se a fenomenologia for experimentada e considerada assim, então ela pode desaparecer, enquanto título, em favor da coisa do pensar, cuja revelação permanece um mistério” (Heidegger, À coisa do pensar, p. 90).
O que provoca a pensar, o fenômeno por excelência, o que passa sempre batido à visão, ou seja, o mais próximo e o mais simples. Fenomenologia é o ver simples e singelo do que é simples e singelo: • “O simples guarda na verdade o enigma do que permanece e é grande. De chofre surge inesperado entre os homens e, não obstante, necessita crescer e amadurecer durante longo tempo. No invisível do que é sempre o Mesmo, protege seus dons. O alcance e a envergadura de todas as coisas maduras, que demoram em torno do Caminho, é que instauram mundo (...).
E assim o homem se dissipa e erra sem caminho. Para o dissipado o simples parece uniforme. O uniforme causa tédio e náusea. Os entediados pela náusea só acham monotonia à sua volta. O Simples já se retirou. Sua força silenciosa sucumbiu. • Não há dúvida, diminui rápido o número daqueles que conhecem o Simples, como uma conquista própria de sua propriedade. Mas estes poucos serão por toda parte os que permanecerão” (Heidegger, O caminho do campo).