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Educação pela Pedra. I – O Movimento Literário • representa um retrocesso em relação às conquistas de 22 • propõe uma volta ao passado, com a revalorização da rima, da métrica, do vocabulário erudito e das referências mitológicas • tendência para o intelectualismo
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Educação pela Pedra I – O Movimento Literário • representa um retrocesso em relação às conquistas de 22 • propõe uma volta ao passado, com a revalorização da rima, da métrica, do vocabulário erudito e das referências mitológicas • tendência para o intelectualismo • preocupação existencial / universalidade temática • aguda consciência estética, explorando as potencialidades da linguagem • preocupação com a forma e o fazer poético • consciência do caráter metalinguístico e intertextual da literatura
II – O Autor • Barcelona e Sevilha: contato com a cultura espanhola, que o influencia • Críticos consideram a poesia cabralina como “antilírica”, porém não se pode considerar seus poemas como apenas descritivos. • Através da objetividade, são dotados de poesia. Seria mais correto afirmar que ele é “antisentimental “ e não “antilírico”. • precisão arquitetônica e extrema economia verbal • linguagem substantiva e concisa • a engenharia da palavra • linguagem permeada de expressões e musicalidade popular • uso de rimas e repetições que não enfraquecem, ao contrário, intensificam a tensão dramática • Uso de aliterações e assonâncias
“Não pensei em fazer literatura engajada ou não engajada. Eu fazia o poema pensando em fazer bem o poema. O que se pode chamar de literatura engajada, na minha poesia, são os temas da seca, da miséria do Nordeste. São os temas dos romancistas do Nordeste, temas que estão presentes em toda a literatura nordestina ".
III – A Obra (1966) • O rigor composicional do poemas largamente difundido pela crítica nesse livro chega a seu ápice . • São quarenta e oito poemas escritos em duas estrofes que muito se assemelham a quadros pictóricos, visualmente considerados. • Ao todo cada poema atinge dezesseis ou vinte e quatro versos • Todos os poemas do livro estão divididos em duas partes. • O universo temático sempre tendo a ver com o Nordeste/Espanha, a condição humana e o fazer poético. • Tudo isso numa rede de inter-relações lucidamente arquitetada. • A educação pela pedra, publicado em 1966, é aberto com as seguintes palavras: “A Manuel Bandeira esta antilira para seus oitent’anos.” • Com tal dedicatória, Cabral anuncia ao leitor alguns dos aspectos que fundamentam o seu estilo: a secura de expressão, a ausência de fluidez de seu verso e a predisposição à negação, que marcará muitos dos poemas da obra.
• Se o lirismo representa, na poesia, a subjetividade, a valorização dos estados de alma da voz poética, e, como o termo indica, a resolução musical do verso, Cabral optará pela aniquilação do eu, pela observação desapaixonada da realidade e pelo verso de ritmo estrangulado, repleto de pontuação e elipses, em muitas composições. • Em nenhum dos 48 poemas da obra surge o pronome “eu”; é clara, portanto, a intenção do autor em fazer com que se sobressaiam, em sua poesia, os objetivos, os temas e as paisagens aos quais ele alude. • A realidade agreste, com seu solo árido, seus cactos e nãos, será matéria de poema. • E não só como tema ou pano de fundo, pois o estilo de Cabral receberá o influxo do meio e o firmará, através de um verso duro, que não se quer de fácil memorização nem se preocupa em ceder espaço ao entendimento imediato do leitor. • É poesia que exige paciência, estudo e uma reeducação do ouvido e do olhar.
• Um dos traços estilísticos mais evidentes da poética de Cabral é a sua disciplina, o seu rigor matemático na construção do poema. • Deixando de lado a concepção romântica, que vê a poesia como fruto de uma inspiração das musas, o poeta pernambucano concebe o poema como o resultado medido de um projeto. • Assim como Euclides da Cunha e Graciliano Ramos, Cabral constata como o meio físico modela o ser humano, fazendo dele o espelho do clima, da vegetação e do solo nordestino, daí a presença marcante e negativa dos cactos e da caatinga em sua poesia. • A educação pela pedra é dividido em quatro seções, cujos títulos são: • Nordeste (a), Não Nordeste (b), Nordeste (A) e Não Nordeste (B).
O único termo comum aos quatro títulos é Nordeste, que, mesmo antecedido por um advérbio de negação, faz-se presente. • É como no movimento dialético em que uma tese só existe porque pressupõe a sua própria negação, ou seja, a existência do que é negado impõe-se, justamente, porque é ela a condição da negação. • Cada seção do livro apresenta 12 poemas, sendo que 24 deles privilegiam a realidade pernambucana e os outros, pertencentes às duas partes intituladas Não Nordeste, versam sobre assuntos vários que vão do galo à arquitetura. • Sobre os aspectos formais da poesia de João Cabral, comenta Secchin: “Nas seções ou partes minúsculas, os poemas têm 16 versos; nas maiúsculas, 24. (...) A rima, nas duas seções iniciais, comparece, toante, nos versos pares, tendo esquema bastante diversificado (mas nunca deixando de existir) nas partes finais.” • Lembramos ao leitor que rima “toante” é aquela que só apresenta correspondência sonora entre as sílabas tônicas da última palavra do verso, por exemplo: “a um banco de areia do mar de chegAda;/ vegetais; de água espaço e sem tempo/ (sem o cabo porque o tempo a arrAsta)” .
1 - CATAR FEIJÃO “Catar feijão se limita com escrever: joga-se os grãos na água do alguidar e as palavras na folha de papel; e depois, joga-se fora o que boiar. Certo, toda palavra boiará no papel, água congelada, por chumbo seu verbo: pois para catar esse feijão, soprar nele, e jogar fora o leve e oco, palha e eco. ///// Ora, nesse catar feijão entra um risco: o de que entre os grãos pesados entre um grão qualquer, pedra ou indigesto, um grão imastigável, de quebrar dente. Certo não, quando ao catar palavras: a pedra dá à frase seu grão mais vivo: obstrui a leitura fluviante, flutual, açula a atenção, isca-a como o risco. “
•Metalingüístico: compara o ato de escrever ao de ato de catar feijões. • O ato de escolher feijões consiste em selecionar o que é bom e utilizá-lo, excluindo assim a parte que não é passível de ser aproveitada. • Assim deve ser o poema, conciso, sintético, não há espaços para as adjetivações inúteis, deve-se ir direto à essência do poema, que serão as pedras. • Entretanto, assim como acontece com o feijão, que muitas vezes entre os grãos “sadios” surge uma pedra, ou um grão indigesto, a poesia também apresenta essa pedra. • Entretanto a pedra no feijão que poder ser prejudicial ao paladar humano, que não é capaz de digeri-la, é, na poesia, um risco benéfico, pois quando mais o leitor tenta digeri-la, mais fácil ela fica de ser compreendida. • Vê-se que para o eu-lírico a poesia deve ser sintética, não é necessário o excesso de palavras para completar uma idéia, mostrando o lado analítico da poética cabralina.
2 - A Educação pela Pedra “Uma educação pela pedra: por lições; Para aprender da pedra, freqüentá-la; Captar sua voz inefática, impessoal (pela de dicção ela começa as aulas). A lição de moral, sua resistência fria Ao que flui e a fluir, a ser maleada; A de poética, sua carnadura concreta; A de economia, seu adensar-se compacta: Lições da pedra (de fora para dentro, Cartilha muda), para quem soletrá-la. //// Outra educação pela pedra: no Sertão (de dentro para fora, e pré-didática). No Sertão a pedra não sabe lecionar, E se lecionasse, não ensinaria nada; Lá não se aprende a pedra: lá a pedra, Uma pedra de nascença, entranha a alma.”
• Nota-se que a lição da pedra é a do silêncio, da dureza, da concretude, enfim, é a antiliçã, que aniquila o pressuposto dialógico de qualquer ensinamento. • O nordestino não é capaz de aprender da pedra porque ele próprio é seu tutor e traz em essência tal conhecimento, como indicam os dois últimos versos do poema. • Texto que é ao mesmo tempo metalingüístico e crítico social. • Pedra é uma “matéria mineral dura e sólida , da natureza das rochas”. • Educar-se pela pedra é educar-se de maneira dura, difícil. • Com relação a educação textual o substantivo pedra pode ser entendido como poesia, ou seja, para apreendermos a poesia, “freqüentá-la, /captar sua voz inefática, impessoal”, é preciso deixá-lo fluir de fora para dentro, é preciso captar sua concretude, é preciso prender a forma, ao poema, pois é ele quem nos leva à poesia, é a transpiração que se sobrepõe inspiração. • Poesia não flui dos sentimentos do artista, nem deve ser fruto da inspiração interior do autor, mas sim fruto do mundo exterior ou do mundo da própria poesia, a metalinguagem. • Outra lição: lição humana. A pedra representa na 2ª estrofe as dificuldades do povo do Sertão, que acaba por aprender com o sofrimento. • Nesse caso o aprendizado é de dentro para fora. A pedra que é a aridez, a rudez e dureza da vida no Sertão, não ensinam nada ao sertanejo, ela apenas se coloca em seu caminho levando-o ao aprendizado interno, à alma.
Há alguns recursos estéticos utilizados pelo autor que vai ao encontro da estrutura da poesia contemporânea, que privilegia a forma lexical coloquial • O verbo jogar no segundo verso está gramaticalmente incorreto. • Segundo as normas da gramática tradicional o certo seria que o verbo estivesse na terceira pessoa do plural, jogam-se e não na terceira pessoa do singular. • Isso caracteriza dentro do poema a valorização do falar mais popular, tendência da poesia modernista que estendeu-se ao texto contemporâneo • No penúltimo verso vemos uma licença poética nas palavras fluviante e flutual. • O poeta inverte os sufixos. O –al de fluvial completa o flut- de flutuante. O mesmo acontece com com o –ante que completa o fluvi- de fluvial. • Dentre os aspectos essa inversão mostra a liberdade de criação do poeta da contemporaneidade.
3 - FÁBULA DE UM ARQUITETO “A arquitetura como construir portas, de abrir; ou como construir o aberto; construir, não como ilhar e prender, nem construir como fechar secretos; construir portas abertas, em portas; casas exclusivamente portas e tecto. O arquiteto: o que abre para o homem (tudo se sanearia desde casas abertas) portas por-onde, jamais portas-contra; por onde, livres: ar luz razão certa. ///// Até que, tantos livres o amedrontando, renegou dar a viver no claro e aberto. Onde vãos de abrir, ele foi amurando opacos de fechar; onde vidro, concreto; até fechar o homem: na capela útero, com confortos de matriz, outra vez feto.”
• Nesse poema há um deslocamento do tema metalingüístico dos anteriores para um tema de âmbito social. • Crítica à urbanização e ao estado de aprisionamento do homem moderno. • Construir casas com portas e janelas, que dão ao homem sensação de liberdade, era a função do arquiteto, que sempre privilegiava a claridade e dava espaço para os ambientes abertos. • Com o medo que assombra a sociedade moderna o homem abdicou de suas aberturas, teve de abrir mão de sua liberdade, de sua claridade, e voltar a viver no escuro, protegido do mundo exterior. • Outra leitura possível desse poema seria a de caráter mais existencialista. • O mundo torna-se o arquiteto do homem a medida que o molda de acordo as necessidades da existência. • Quando criança o ser humano é uma casa com portas e janelas abertas para o mundo, a por parte do mundo infantil uma manifestação espontânea de seus desejos e pensamentos. • À medida que o homem sente-se amedrontado pelas desilusões da vida, fecha-se em si mesmo fechando sua portas e janelas, voltando-se para a introspecção.
4 - O SERTANEJO FALANDO “A fala a nível do sertanejo engana: as palavras dele vêm, como rebuçadas (palavras confeito, pílula), na glace de uma entonação lisa, de adocicada. Enquanto que sob ela, dura e endurece o caroço de pedra, a amêndoa pétrea, dessa árvore pedrenta (o sertanejo) incapaz de não se expressar em pedra. Daí porque o sertanejo fala pouco: as palavras de pedra ulceram a boca e no idioma pedra se fala doloroso; o natural desse idioma fala à força. Daí também porque ele fala devagar: tem de pegar as palavras com cuidado,confeitá-la na língua, rebuçá-las; pois toma tempo todo esse trabalho.”
• Nesse poema vemos novamente a imagem da pedra que funde-se com a do sertanejo. • O falar do homem do sertão está escondido em doçura, doçura que traz sob si a rudez da pedra que lhe é difícil esconder. • O sertanejo passa a falar pouco, pois tem grande dificuldade em confeitar a língua. • O poema faz uma análise da grande dificuldade que o sertanejo tem de expressar por sentir à margem. • Esse poema nos remete ao romance Vidas Secas de Graciliano Ramos. • Os personagens de Graciliano são retirantes que fogem da seca e que praticamente não conseguem dialogar entre si. • Fabiano, o chefe da família, pensa muito, fica remoendo suas angústias, mas não consegue expressá-las por meio das palavras. • Isso porque esse homem sofrido da seca sertaneja não tem voz , ele é ignorado por sistema injusto, que só capaz que gerar pedras na alma sertaneja.
5. Os Reinos do Amarelo A terra lauta da Mata produz e exibe / um amarelo rico (se não o dos metais): o amarelo do maracujá e os da manga, / o do oiti-da-praia, do caju e do cajá; amarelo vegetal, alegre de sol livre, / beirando o estridente, de tão alegre, e que o sol eleva de vegetal a mineral, / polindo-o, até um aceso metal de pele. Só que fere a vista um amarelo outro, e a fere embora baço (sol não o acende): amarelo aquém do vegetal, e se animal, de um animal cobre: pobre, podremente.///// Só que fere a vista um amarelo outro: / se animal, de homem: de corpo humano; de corpo e vida; de tudo o que segrega (sarro ou suor, bile íntima ou ranho), / ou sofre (o amarelo de sentir triste, de ser analfabeto, de existir aguado): amarelo que no homem dali se adiciona o que há em ser pântano, ser-se fardo. Embora comum ali, esse amarelo humano ainda dá na vista (mais pelo prodígio): pelo que tardam a secar, e ao sol dali, tais poças de amarelo, de escarro vivo.
A temática social apresta-se em diversas composições, seja de modo explicito ou velado. • No poema “Os Reinos do amarelo”, que consta da 3° parte do livro, a tensão dos contrários cria uma espécie de gradação cromática do amarelo, que vai do amarelo vivo da 1° estrofe, “o amarelo do maracujá e os da manga ,/ o do oiti e do cajá / amarelo vegetal,alegre de sol livre,” até o amarelo anêmico e baço do homem açoitado pelo sol e pelas injustiças sociais: “Embora comum ali, esse amarelo humano / ainda dá na vista (mais pelo prodígio): / pelo que tardam a secar, e ao sol dali / tais poças de amarelo, de escarro vivo.” • Neste poema, a primeira parte é dedicada ao reino vegetal, enfatizando-lhe o caráter vivificante, que faz do sol a matéria de sua exuberância; • E a segunda mostra-nos um amarelo outro, “amarelo aquém do vegetal, e se animal,/ de um animal cobre: pobre, podremente.” • O amarelo perde então a vitalidade e serve para caracterizar o homem “de ser analfabeto, de existir aguado”.
6. Rios sem Discurso Quando um rio corta, corta-se de vez / o discurso-rio de água que ele fazia; cortado, a água se quebra em pedaços,/ em poços de água, em água paralítica. Em situação de poço, a água equivale / a uma palavra em situação dicionária: isolada, estanque no poço dela mesma, / e porque assim estanque, estancada; e mais: porque assim estancada, muda, / e muda porque com nenhuma comunica, porque cortou-se a sintaxe desse rio, / o fio de água por que ele discorria.///// O curso de um rio, seu discurso-rio, chega raramente a se reatar de vez; um rio precisa de muito fio de água para refazer o fio antigo que o fez. Salvo a grandiloquência de uma cheia lhe impondo interina outra linguagem, um rio precisa de muita água em fios para que todos os poços se enfrasem: se reatando, de um para outro poço, em frases curtas, então frase e frase, até a sentença-rio do discurso único em que se tem voz a seca ele combate
• Chamamos atenção aqui para o poema “Rios Sem Discurso”, não só pela sua inegável beleza, mas também porque une engajamento e metalinguagem, procedimentos comuns nos poemas de Cabral, como se pode notar no difícil “ O Hospital Da Caatinga” e em “Dois P.S. A Um Poema”. • O título do poema insere o leitor, mais uma vez, no universo da negação e da ausência. • Se o discurso é caracterizado pela continuidade, por ter um curso, Cabral fará com que a imagem desse rio seja a daqueles rios intermitentes, que não apresentam curso certo, que às vezes se reduzem a uma simples poça, que não se faz comunicar com nenhuma outra. • Rio sem discurso caracteriza muito bem a antilira do poeta, a sua negação ao fluir do verso, a sua aversão à grandiloqüência. • Ele assimila, em seu processo de construção do poema, o desenho desses rios que não recebem chuva e faz com que seu verso os reproduza.
7. Num monumento à aspirina “Claramente: o mais prático dos sóis, o sol de um comprimido de aspirina: de emprego fácil, portátil e barato, compacto de sol na lápide sucinta. Principalmente porque, sol artificial, que nada limita a funcionar de dia, que a noite não expulsa, cada noite, sol imune às leis de meteorologia, a toda hora em que se necessita dele levanta e vem (sempre num claro dia): acende, para secar a aniagem da alma, quará-la, em linhos de um meio-dia.(...)” • Diferente de Guimarães Rosa, que vê o sertão como um espaço de possibilidades e de transcendências, o autor enfatiza a capacidade que o sertão tem de mineralizar o homem, de assimilá-lo, de assassiná-lo. • No poema “O Sol Em Pernambuco”, o astro glorioso é comparado a um fuzil, evidenciando assim o caráter predatório e inclemente do sol. • O caráter insólito do poema acima consiste no fato do autor fundir a imagem da aspirina à do sol; no caso,um sol bem vindo.
8. Sobre o sentar / estar no mundo Onde quer que certos homens se sentem sentam poltrona, qualquer o assento. Sentam poltrona: ou tábua-de-latrina, assento além de anatômico, ecumênico, exemplo único de concepção universal, onde cabe qualquer homem e a contento. Onde quer que certos homens se sentem sentam bancos ferrenhos de colégio; por afetuoso e diplomata o estofado, os ferem nós debaixo, senão pregos, e mesmo a tábua-de-latrina lhes nega o abaulado amigo, as curvas de afeto. A vida toda, se sentam mal sentados e mesmo de pé algum assento os fere: eles levam em si os nós-senão-pregos, nas nádegas da alma, em efes e erres.
• No poema “Sobre o Sentar-/Estar No Mundo”, a troça é evidenciada pelo título, que ironiza a filosofia ontológica, que se debruça sobre a problemática do ser humano, de sua essência e existência. • Cabral coloca o verbo sentar onde, normalmente, figuraria o verbo “ser”, indicando a banalização do tema filosófico. • Na primeira parte do poema, o poeta demonstra como a tábua da latrina universaliza o homem; segundo o eu-lírico, ela é o “exemplo único de concepção universal, / onde cabe qualquer homem e a contento.” • A segunda parte funciona como contraposição da primeira; nela o caráter ecumênico da tampa da latrina desaparece. • O poeta salienta o eterno desconforto do homem sentado: “e mesmo a tábua de latrina lhes nega / o abaulado amigo, as curvas de afeto”.
9. Nas covas de Baza O cigano desliza por encima da terra não podendo acima dela, sobrepairado; jamais a toca, sequer calçadamente, senão supercalçado: de cavalo, carro. O cigano foge da terra, de afagá-la, dela carne nua ou viva, no esfolado; lhe repugna, ele que pouco a cultiva, o hálito sexual da terra sob o arado. De onde, quem sabe, o cigano das covas dormir na entranha da terra, enfiado; dentro dela, e nela de corpo inteiro, dentros mais de ventre que de abraço. Contudo, dorme na terra uterinamente, dormir de feto, não o dormir de falo; escavando a cova sempre, para dormir mais longe da porta, sexo inevitável.
• No que diz respeito ao erotismo, o que vemos na obra é o aproveitamento de imagens fálicas presentes na natureza e a conversão delas em imagens poéticas. • Como exemplo, temos o poema “Nas Covas De Baza”, em que a primeira parte apresenta-nos o cigano que, vivo, foge da terra e da sua ânsia devoradora, mas como indica o título, em verdade, o cigano foge é para a sua própria cova, “o cigano foge da terra, de afagá-la,/ dela carne nua ou viva, no estofado;/ lhe repugna, ele que pouco a cultiva,/ o hálito sexual da terra sobre o arado”. • A terra da qual foge o cigano, na segunda parte do poema ganha o estatuto de cova e alcança a dimensão erótica e feminina. • Octavio Paz, intelectual mexicano, salienta que a fenda é a representação do sexo feminino, já que a mulher é quem tem a anatomia aberta. • A cova, a fenda, se prepara então para receber o morto como uma mulher para receber o falo ou guardar o feto, “contudo, dorme na terra uterinamente,/ dormir de feto, não dormir de falo;/ escavando a cova sempre, para dormir/ mais longe da porta, sexo inevitável”. • Em outro poema de tonalidade erótica, “Duas Bananas & A Bananeira”, as imagens da banana e do mangará elevam-se à do pênis e da prostituta: “daí a bananeira dobrar, como impotente, / a ereção do mangará, de crua macheza;/ e daí conceber as bananas sem caroço,/ fáceis de despir, com carne de rameira.”
10. Fazer o seco, fazer o úmido A gente de uma capital entre mangues, gente de pavio e de alma encharcada, se acolhe sob uma música tão resseca que vai ao timbre de punhal, navalha. Talvez o metal sem húmus dessa música, ácido e elétrico, pedernal de isqueiro, lhe dê uma chispa capaz de tocar fogo Na molhada alma pavio, molhada mesmo. A gente de uma Caatinga entre secas, Entre datas de seca e seca entre datas, se acolhe sob uma música tão líquida que bem poderia executar-se com água. Talvez as gotas úmidas dessa música Que a gente dali faz chover de violas, Umedeçam, e senão coma água da água, Com a convivência da água, langorosa.
• O poema vale-se da contradição em dois níveis distintos e complementares: o da linguagem e o do bioma. • A 1ª estrofe apresenta-nos o mangue como o lugar do úmido, do barro, de gente encharcada, molhada; porém o homem situado numa capital entre mangues intui o seco. • A existência da seca, da paisagem de galhos tortuosos da Caatinga, faz com que o homem do Mangue viva sob ameaça. • Já a Segunda estrofe evidencia o contrário. • O homem da Caatinga sonha com a possibilidade do úmido, da chuva, fazendo dela o motivo musical de seus anseios. • Na primeira estrofe, as palavras que caracterizam a música que representa o temor do homem do mangue são punhal, navalha e ácido, diferente do que ocorre na segunda estrofe, em que o elemento férreo, da dureza, não comparece.
11. Tecendo a Manhã Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão.