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Sapiens – demens A era do cérebro grande começa com o homem de neanderthal, já sapiens, que dá depois lugar ao homem atual, único e último representante da família dos hominídeos e do gênero homem sobre a terra. Quando aparece o sapiens, o homem já é socius, faber, loquens. (p.93)
O que diz a sepultura Para os Neanderthaleses “o morto está numa posição fetal” o que sugere uma crença no seu renascimento. A sepultura testemunha não só uma irrupção da morte na vida humana, mas também modificações antropológicas que permitiram e provocaram essa irrupição. (p.93-94)
Uma nova consciência A morte não só é reconhecida como fato, como a reconhecem os animais que finge de morto para enganar o inimigo, não só é ressentida como perda, desaparição, lesão irreparável que pode ser ressentida pelo símio(macacos), pelo elefante, pelo cão, pela ave. A ligação de uma consciência de transformações, de uma consciência de imposições, de uma consciência do tempo, indicam no sapiens a emergência de um grau mais complexo e de uma qualidade nova do conhecimento consciente. (p.94)
O mito e a magia O imaginário irrompe na percepção do real e que o mito irrompe na visão do mundo. Daí por diante, o imaginário e o mito passam a ser simultaneamente produtos e co-produtores do destino humano. (Os funerais são ritos que contribuem para operar a passagem à outra vida de uma forma conveniente, isto é, protegendo os vivos contra a irritação do morto). (p.95)
A brecha antropológica Os ritos da morte exprimem, reabsorvem e exorcizam um traumatismo provocado pela idéia da redução ao nada. todas as sociedades sapientais que se conhecem, traduzem ao mesmo tempo uma crise e o ultrapassamento dessa crise, por um lado, a dilaceração e a angústia e, por outro lado, a esperança e a consolação.
O homo sapiens é atingido pela morte como por uma catástrofe irremediável, que vai trazer consigo uma ansiedade específica, a angústia ou horror da morte, que a presença da morte passa a ser um problema vivo, isto é, que trabalha a sua vida. (p.95)
A morte abre até à dilaceração, e que é preenchida pelos mitos e pelos ritos da sobrevivência, que finalmente, integram a morte. Com o sapiens nasce a dualidade do sujeito e do objeto, laço inquebrável, ruptura intransponível, que, posteriormente, toda as religiões e filosofias vão procurar, de mil maneiras, transpor ou aprofundar. O homem já dissocia efetivamente o seu destino do destino natural, embora esteja legitimamente persuadido de que a sua sobrevivência obedece às leis naturais do desdobramento e da metamorfose.
Um progresso da individualidade A irrupção da morte, no sapiens, é, ao mesmo tempo, a irrupção de uma verdade e de uma ilusão, a irrupção de uma elucidação e de um mito, a irrupção de uma ansiedade e de uma garantia, a irrupção de um conhecimento objetivo e de uma nova subjetividade, e, sobretudo, a ligação ambígua entre ambos.
O que diz a pintura No homem de neanderthal, o ocre vermelho não é utilizado só para pintar as ossadas dos mortos, mas também para efetuar pinturas sobre o corpo humano e para desenhar símbolos ou sinais sobre os mais diversos objetos. Nos limitamos a admirar nesses fenômenos o nascimento da arte, em vez de ler neles o segundo nascimento do homem, o nascimento do homo sapiens. O campo gráfico da humanidade pré-histórica é muito vasto e muito variado, tentar fazer a grafologia do sapiens.
A arte quer dizer, destreza, habilidade, precisão, invenção no saber-fazer, que os predecessores do sapiens já tinham desenvolvido nas atividades práticas e designadamente na caça, aventura-se e desdobra-se num campo novo, que é o das produções próprias do espírito, imagens, símbolos, idéias, que é designado como noológicas (conjunto das ciências cujo o objeto é o espírito humano).
Segundo Morin (2000) os fenômenos mágicos são potencialmente estéticos e que os fenômenos estéticos são potencialmente mágicos. Assim como nos revelou a sepultura, a magia irrompe no sapiens. O estudo das sociedade arcaicas mostra-nos que a decoração, o adorno, a escultura, a pintura, podem ter valor de proteção e de sorte e encontrar-se ligadas a crenças mitológicas e a operações rituais.
As pinturas rupestres de animais,, legadas pela pré-história, correspondiam a ritos mágicos preparatórios da caça. A existência do duplo é atestada pela sombra móvel que acompanha cada um pelo desdobramento da pessoa no sonho e pelo desdobramento do reflexo na água, quer dizer, a imagem, e a imagem não é só uma simples imagem, mas contém a presença do duplo do ser representado e permite, por intermédio, agir sobre esse ser; é esta ação que é propriamente mágica: rito de evocação pela imagem, rito de invocação à imagem, rito de possessão sobre a imagem (enfeitiçamento).
A etologia já nos revelou a existência de rituais animais de comportamento simbólico. O próprio do ritual mágico, no homo sapiens é de se dirigir não só diretamente aos seres de que espera uma resposta, mas também às imagens ou símbolos.
A magia é também a eflorescência de um novo universo estético. Como abordar a estética? Surge com o último furto da cultura, que desabrocha quando se liberta das finalidades mágico-religiosas, uma qualidade universal ligada à própria exuberância da vida, e que se desdobra nas florações vegetais, assim como nas carapaças, nas ramagens, nas plumagens, nos adornos das espécies animais mais variadas.
O Homo sapiens pré-histórico conhece e procura o gozo estético. A própria sensibilidade estética também ultrapassa largamente o domínio das formas visuais. E abre-se ao odores e aos perfumes, às formas sonoras (ritmos, música, canto) e a expressão corporal (dança). A sensibilidade estética é bem uma aptidão para entrar em ressonância, em “harmonia”, em sincronismo, com sons, odores, formas imagens, cores, que são profundamente produzidos, não só pelo universo, mas daqui por diante pelo Homosapiens.
A irrupção do erro O homosapiens está condenado ao método que se chama de tentativas e erros, ainda que, principalmente quando, se mantenha fiel ao método empírico-lógico. O excesso ubris(do grego hubris que quer dizer tudo que passa da medida: orgulho, exagero, afetação... em o todo campo corporal)
Não se pode dizer que o sorriso, o riso, as lágrimas antecedem ao sapiens, mas que são estados corporais violentos, convulsivos, espasmódicos, são rupturas, abalos, e, de resto podem reunir-se e permutar-se: ri-se até às lágrimas e os soluços podem transformar-se me risos “dementes”. Na criança sapiens esses estados se exprimem com intensidade, no sapiens adulto, há um controle desses estados.
O homosapiens é muito mais levado ao excesso do que os seus predecessores e o seu reino corresponde a um transbordamento do onirismo, do eros, da afetividade e da violência.
A irrupção da desordem O sonho humano embora polarizado e orientado por obsessões permanentes prolifera de maneira enovelada e desordenada. A ordem está na cultura, na sociedade, ligada à programação sociocultural, aos sistemas de normas e de interdições, às regras de organização da sociedade que sustem a desordem e lhe sabem dar folgas designadamente nos dias de festas. A ordem natural é muito mais fortemente dominada pela homeostasia, pela regulação, pela programação. É a ordem humana que se desenvolve sob o signo da desordem.
Sapiens-demens É um ser de uma afetividade intensa e instável, que sorri, ri, chora, um ser ansioso e angustiado, um ser gozador, ébrio, extático, violento, furioso, amante, um ser invadido pelo imaginário, um ser que conhece a morte, mas que não pode acreditar nela, um ser que segrega o mito e a magia, um ser possuído pelos espíritos e pelos deuses, um que se alimenta de ilusões e de quimeras, um ser subjetivo, cujas relações com o mundo objetivo são sempre incertas, um ser sujeito ao erro e à vagabundagem, um ser úbrico que produz desordem, portanto, somos obrigados a ver o Homo sapiens como Homo demens.
Os prodigiosos desenvolvimentos do homosapiens: • a colonização do planeta pelo homo: o Homoerectus, o sapiens estende-se sobre toda a terra nalgumas dezenas de milhares de ano; • desde o magdaleniano (paleolítico inferior);
de um pensamento empírico-lógico: aptidões intelectuais para organização, para o conhecimento, invenção e para criação; • a constituição de uma sociedade mais complexa: a paleossociedade, a constituição de sociedades vastas, de Estados e de Cidades.
A hipercomplexidade A desordem é todo o fenômeno que, em relação ao sistema considerado, parece obedecer ao acaso e não ao determinismo do sistema, tudo aquilo que não obedece à estrita aplicação mecânica das forças segundo os esquemas pré-fixados da organização. Ruído ― é em termos de comunicação, toda a perturbação que altera ou perturba a transmissão de uma informação. O erro ― é toda a recepção inexata de uma informação, em relação a sua emissão. O erro em vez de degradar a informação, enriquece-a. o ruído em vez de provocar uma desordem fatal, suscita uma ordem nova.
Qualquer sistema vivo está ameaçado pela desordem, da qual, ao mesmo tempo, se alimenta. Todo o sistema vivo é, simultaneamente, parasitado pela entropia e parasita dela.
A linha mestra para compreender a hominização é a complexificação do cérebro, e esta manifesta-se de forma quantitativa, pelo aumento do seu volume. De forma qualitativa, ela exprime-se pela progressão das competências estratégicas/heurísticas/inovadoras e pelo aumento do jogo aleatório das associações.
O último continente desconhecido do homem é o próprio homem, e o centro desse continente, o cérebro, não só nos é desconhecido, mas também incompreensível. O cérebro sapiental é policêntrico. A introdução maciça da desordem e do acaso está ligada não só às características acima citadas, mas também à enorme população neuronal, que conta três a quatro vezes mais indivíduos do que o número de humanos que vive na terra.
As competências e o instinto em migalhas A evolução biológica hominizante, encontram a sua culminação no sapiens ― tendem a revelar-nos a existência, até aos 3-4 anos, de um envasamento pré-cultural, quer dizer inato, de comportamentos, de conhecimentos, de comunicações. Assim como a nascença, a criança introduz na boca qualquer objeto. Não existe na sociedade adulta (paleo-hominídeo) anterior à constituição da linguagem articulada.
O cérebro do sapiens, de forma por vezes heurística, sempre aleatória, muitas vezes errada (mas podendo auto- corrigir-se) trabalha no, com, e por meio do, ruído, isto é, adapta-se ao ruído e adapta-o a si próprio, levando assim a um nível superior, hipercomplexo, o princípio da orderfromnoise (ou do acaso organizador).
A louca e a fada da casa É nesta desordem organizadora , nesta organização desordenada, que se situa a invenção permanente do sonho. Sonhos e fantasias produzem incansavelmente combinações novas, estranhas, surpreendentes, mistura de incoerência e de coerência, que os analistas pretendem erradamente reduzir à incoerência aleatória e à diversidade de linhas de força que atraem os enxames de imagens. Sonho é poiesis, poesia no sentido original e profundo do termo, segundo Roger Bastide, “se se continua a sonhar é que a criação não se acabou” (R. Bastide, 1972, p. 47 apud Morin, 2000 p. 120).
A imaginação “louca da casa” é, ao mesmo tempo, fada da casa, no jogo permanente da fantasia à idéia, da afetividade à práxis, e vice-versa, fonte das novações de todos os tipos que suscitaram e enriqueceram a evolução humana.
A brecha e a abertura Não há qualquer dispositivo no cérebro que permita distinguir os estímulos externos dos estímulos internos, quer dizer, o sonho da vigília, a alucinação da percepção, o imaginário da realidade, o subjetivo do objetivo. Nenhuma das mensagens que chegam ao espírito pode ser desambigüizada em si própria. Mesmo em sonho, o meio resiste, mesmo em sonho, a memória fala.
O espírito humano na sua abertura constitutiva é levado ou a fechá-la mitológica e ideologicamente (sendo ideologia qualquer teoria fechada que encontra em si própria a sua prova) ou, sabendo-se condenado ao inacabamento do conhecimento, a votar-se à busca errante da verdade.
O cérebro biúnico, triúnico e polifônico Não podemos encarar o cérebro como órgão; procuramos concebê-lo como sistema. O cérebro humano é biúnico pela dualidade dos seus hemisférios, que, simétricos nos primatas, são diferenciados no sapiens por certas localizações. A concepção triúnica pode conceber-se de uma maneira não complexa, considera o cérebro humano constituído por três estratos cerebrais, cada um localiza fenômenos globais, mas também se podem considerar os subconjuntos como heranças filogenéticas, simultaneamente atrofiadas e modificadas pelas reorganizações sucessivas efetuadas no decurso da evolução.
O princípio e o horizonte da loucura Compreender-se a demência do sapiens: a) A ambigüidade e a indecidibilidade fundamental na relação entre o que passa no interior do espírito (subjetividade, imaginário) e o que se passa no exterior (objetividade, realidade); b) O recuo e a confusão do programa genético sob o aumento do ruído e das competências; c) A fraca estabilidade do sistema triúnico; d) A fraqueza daquilo que já é um epifenomeno e ainda não é um epicentro, a consciência, quer dizer esse fenômeno em que o sujeito se objetiva como objeto, em que o objeto é percebido nas suas aderências subjetivas, em que o espírito se esforça por controlar a relação entre o real e o imaginário.
A primeira fonte da “loucura” do sapiens reside, evidentemente, na confusão que faz considerar o imaginário como realidade, o subjetivo como objetivo. O gênio da espécie O gênio do sapiens reside na intercomunicação entre o imaginário e o real, o lógico e o afetivo, o especulativo e o existencial, o inconsciente e o consciente, o sujeito e o objeto, donde resultam todos os desvios, confusões, erros, divagações, demências, mas de que resultam, ao mesmo tempo, e em virtude dos mesmos princípios operando sobre os mesmos dados, todos os conhecimentos profundos.
A integração antropológica O cérebro é um centro organizador do conhecimento, do comportamento e da ação: a esfera ecossistêmica, a esfera genética, a esfera cultural e social e fenotípica do organismo individual. O homem genérico Seria absolutamente insuficiente, na dialética sapiens demens, esquecer a flor dessa hipercomplexiddade, i. é., a consciência.
A consciência Aquilo que ilumina fica sempre na sobra. A consciência é qualquer coisa de global e de indeciso. Não é isolável do conjunto das aptidões e das atividades superiores do espírito do sapiens. Na brecha que se abriu entre o sujeito e o objeto, na franja de interferência onde se sobrepõem o imaginário e o real.
A ansiedade Existe uma ansiedade animal, ligada a vigilância, e que desperta ao mínimo sinal de perigo. A ansiedade, como consciência pressupõe o pensamento que já não está unicamenteaplicado ao comportamento imediato e ao ambiente imediato: a ansiedade está liga à própria complexidade cerebral.
O animal crísico o sapiens “tecido de contradições”, é, portanto, um animal crísico: é, ao mesmo tempo, a fonte de seus falhanços, de seus sucessos, das suas invenções, e também da sua neurose fundamental.
A neurose da humanidade Na vida animal o rito é como demonstraram Tinbergen e Lorenz um comportamento comunicacional, por vezes de caráter mimético-simbólico que transmite uma mensagem a fim de obter uma resposta. A resposta chega sempre: é pelo sentimento de segurança ou de proteção que resulta do rito; e é no máximo, ou no comportamento favorável do ambiente (chuva, caça, colheita, sucesso...) ou uma solução psicossomática (cura de uma doença, exorcização dos espíritos malignos).
Em rodagem/ A natureza humana Quem é o homem? Ser vivo, animal, vertebrado, mamífero, primata, hominídeo, e também qualquer outra coisa, chamada Homosapiens, escapa não só a uma definição simples, mas também a uma definição complexa.
Precisamos ligar o homem razoável (sapiens) ao homem louco (demens), ao homem técnico, ao construtor, ansioso, gozador, extático, cantante e dançante, instável, subjetivo, imaginário, mitológico, crísico, neurótico, erótico, úbrico, destruidor, consciente, inconsciente, mágico, racional... numa cara com muitas faces, em que o hominídeo se transforme definitivamente em homem.
O homem sapiens é realmente uma quimera, um monstro, um caos, um sujeito de contradições, um prodígio, juiz de todas as coisas, verme imbecil, depositário da verdade, cloaca de incerteza e de erro, glória e nojo do universo... deslindamos nós esta embrulhada? (Pascal)