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O PROTESTANTISMO FRANCÊS NO SÉCULO DA REFORMA A FRANÇA ANTÁRTICA Alderi Souza de Matos. Após o descobrimento do Brasil, Portugal demorou a interessar-se pela ocupação e a colonização dos novos domínios.
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O PROTESTANTISMO FRANCÊS NO SÉCULO DA REFORMAA FRANÇA ANTÁRTICAAlderi Souza de Matos
Após o descobrimento do Brasil, Portugal demorou a interessar-se pela ocupação e a colonização dos novos domínios. • Por isso, outras nações européias voltaram os seus olhos para o Brasil, atraídas pelas suas riquezas naturais. Entre essas nações estava a França.
Na primeira metade do século 16, a França, cujo rei era Francisco I, experimentava conflitos em duas frentes: • Externamente havia a antiga rivalidade com o Sacro Império Germânico, governado por Carlos V. • No interior do país, surgia um fenômeno novo e inquietante: o protestantismo.
No Brasil, após a experiência mal-sucedida das capitanias hereditárias e as constantes incursões de outras nações, Portugal resolveu tomar providências concretas. • Em 1549 chegou o primeiro governador-geral, Tomé de Souza, que se instalou em Salvador, Bahia, a primeira capital da colônia. Todavia, o controle sobre a imensa costa era ainda muito limitado.
Foi então que um aventureiro francês teve a idéia de fundar uma colônia no Brasil, em região já bem conhecida pelos franceses: a baía da Guanabara. • Nicolas Durand de Villegaignon (1510-1571) era vice-almirante da Bretanha (noroeste da França) e cavaleiro da Ordem de Malta, também conhecida como Ordem de São João de Jerusalém.
São controvertidas as razões que teriam levado Villegaignon a planejar esse empreendimento. • Possivelmente houve um conjunto de motivações: adquirir fama e riquezas, conquistar novos territórios para o seu país e dar refúgio a pessoas que sofriam intolerância religiosa na França.
Villegaignon aproximou-se do vice-almirante Gaspard de Coligny, um dos principais conselheiros do reino, que nutria fortes simpatias pela Reforma. • Com isso, conseguiu o apoio do rei Henrique II (1547-1559), que lhe forneceu dois navios aparelhados e recursos para as despesas de viagem.
Depois de reunir um bom número de trabalhadores, recrutando-os inclusive nas prisões de Paris e Rouen, deixou o porto de Havre, na Normandia, em 15 de julho de 1555. • Chegaram ao Rio de Janeiro em 10 de novembro, sendo bem recebidos pelos nativos tupinambás, acostumados à presença de franceses naquela região.
Eventualmente o grupo instalou-se na pequena ilha de Serigipe, mais tarde denominada Villegaignon, onde foi construído o Forte Coligny. A colônia recebeu o nome de “França Antártica”. • O líder em pouco tempo granjeou a antipatia dos colonos: impunha-lhes trabalhos pesados e não proporcionava alimentação adequada. Logo surgiu uma conspiração, que foi punida com rigor.
Um dos companheiros de Villegaignon nesse período foi o frade franciscano André Thévet, cosmógrafo do rei Henrique II, que mais tarde escreveu duas obras, Singularidades da França Antártica (1558) e Cosmografia Universal (1575), em que defendeu Villegaignon e fez pesadas críticas aos reformados. Jean de Léry afirma que escreveu as suas narrativas em parte para rebater as alegações de Thévet.
Diante das dificuldades surgidas, Villegaignon decidiu escrever à Igreja Reformada de Genebra, solicitando o envio de pastores e outras pessoas que ajudassem a elevar o nível religioso e moral da colônia e evangelizassem os indígenas.
Coligny, a quem também foi enviada uma carta, convidou para liderar o novo grupo de colonos um ex-vizinho seu, Filipe de Corguilleray, conhecido como senhor Du Pont, que agora residia em Genebra. • Por sua vez, Calvino e seus colegas escolheram alegremente para acompanhar o grupo os pastores Pierre Richier (50 anos) e Guillaume Chartier (30 anos).
Richier era doutor em teologia e ex-frade carmelita. Depois da estadia no Brasil residiu em La Rochelle, onde faleceu em 1580. • Chartier, natural da Bretanha, também estudou em Genebra. Mais tarde foi capelão de Jeanne D’Albret, mãe do futuro rei Henrique IV.
Os huguenotes que os acompanharam foram: Pierre Bourdon, Matthieu Verneil, Jean du Bourdel, André Lafon, Nicolas Denis, Jean Gardien, Martin David, Nicolas Raviquet, Nicolas Carmeau, Jacques Rousseau e o sapateiro Jean de Léry, o notável cronista da viagem. Eram ao todo 14 pessoas.
O grupo deixou Genebra no dia 16 de setembro de 1556. Após visitarem o almirante Coligny em Chatillon-Sur-Loing, seguiram para Paris, onde outros se uniram à comitiva. Alguns acreditam que entre eles estava Jacques Le Balleur. • Após passarem por Rouen, chegaram ao porto de Honfleur, na Normandia, embarcando para o Brasil no dia 19 de novembro.
A frota de três navios era comandada por Bois Le Conte, sobrinho de Villegaignon. A bordo iam cerca de 290 pessoas, inclusive algumas mulheres. • Como de costume, a viagem foi muito penosa. A certa altura, diante da situação em que se achavam, os reformados recitaram o Salmo 107 (ver os versos 23-30).
No dia 7 de março de 1557, os viajantes finalmente entraram no “braço de mar” chamado Guanabara pelos selvagens e Rio de Janeiro pelos portugueses. • O desembarque no forte Coligny deu-se no dia 10 de março, uma quarta-feira. O vice-almirante recebeu o grupo afetuosamente e demonstrou alegria porque vinham estabelecer uma igreja reformada.
Logo em seguida, reunidos todos em uma pequena sala no centro da ilha, foi realizado um culto de ação de graças, o primeiro culto protestante ocorrido no Novo Mundo. • O ministro Richier orou invocando a Deus. Em seguida foi cantado em uníssono, segundo o costume de Genebra, o Salmo 5: “Dá ouvidos, Senhor, às minhas palavras” (“Aux paroles que je veux dire, plaise-toi l’aureille prester”).
Esse hino constava do Saltério Huguenote, com metrificação de Clemente Marot e melodia de Luís Bourgeois, e até hoje se mantém nos hinários franceses. Bourgeois foi diretor de música da Igreja de Genebra de 1545 a 1557 e um dos grandes mestres da música francesa no século 16. • A versão mais conhecida em português (“À minha voz, ó Deus, atende”) tem música de Claude Goudimel (†1572) e metrificação do Rev. Manoel da Silveira Porto Filho.
Em seguida, o pastor Richier pregou um sermão com base no Salmo 27:4: “Uma coisa peço ao Senhor e a buscarei: que eu possa morar na casa do Senhor todos os dias da minha vida, para contemplar a beleza do Senhor e meditar no seu templo”. • Após o culto, os huguenotes tiveram a sua primeira refeição brasileira: farinha de mandioca, peixe moqueado e raízes assadas no borralho. Dormiram em redes, à maneira indígena.
Por ordem de Villegaignon, passaram a realizar-se preces públicas noturnas após o trabalho diário, devendo os pastores pregar diariamente e duas vezes aos domingos. • A Santa Ceia segundo o rito reformado foi celebrada pela primeira vez no domingo 21 de março de 1557. Em todos os cultos entoavam-se salmos, segundo o uso das igrejas reformadas.
Inesperadamente, o vice-almirante, que de início se mostrara muito simpático à igreja reformada, começou a levantar questões sobre pontos doutrinários, em especial a Ceia do Senhor. Achava que a presença de Cristo no sacramento era não somente espiritual, mas física. • No início de junho, enviou o pastor Chartier de volta à França para colher opiniões dos teólogos, especialmente de Calvino, a esse respeito.
Com o passar do tempo, começou a insistir em outros pontos: era necessário adicionar água ao vinho da Ceia, o pão consagrado beneficiava tanta a alma como o corpo, devia-se pôr sal e óleo na água do batismo, um ministro não podia contrair segundas núpcias. • Finalmente, declarou ter mudado de opinião sobre Calvino, considerando-o um herege desviado da fé. Restringiu as prédicas a meia hora e passou a assisti-las raramente.
Qual a razão dessa mudança? Léry opina que Villegaignon recebera cartas do cardeal de Lorena censurando-o fortemente por ter abandonado a fé católica e ele, temeroso das consequências, teria mudado de opinião. • Os reformados passaram a celebrar a Ceia à noite, sem o conhecimento do comandante, que em fins de outubro os expulsou para a terra firme.
Eles se instalaram em um lugar denominado Briqueterie (olaria), onde permaneceram dois meses à espera de um navio que os levaria de volta para a pátria. • Como já faziam quando estavam na ilha, continuaram a visitar os indígenas, com os quais tinham ótimo relacionamento.
Foram esses contatos que permitiram a Jean de Léry (1534-1611) escrever o relato sobre a vida dos nativos que tanto impressiona os estudiosos. • Nesse relato, que abrange mais da metade do seu livro, ele descreve com detalhes todos os aspectos da vida indígena, revelando grande percepção, simpatia e sensibilidade.
Entre outras informações interessantes, Léry preservou pela primeira vez algumas canções dos nossos índios. • Uma dessas canções tupinambás diz: pirá-uassú a uêh, camurupuí-uassú a uêh (“Peixe grande, estou com fome! Camurupim, estou com fome!”)
Frustrados os objetivos da sua missão, os reformados contrataram transporte em um navio vindo de Havre. • Partiram no dia 4 de janeiro de 1558, depois que o Jacques foi carregado com pau-brasil, pimentão, algodão, bugios, saguis, papagaios e outras coisas da terra. • Villegaignon havia dado ao mestre do navio cartas dirigidas a várias pessoas, inclusive um processo em que pedia ao primeiro magistrado da França que os huguenotes fossem presos e queimados como hereges.
O navio era velho e tinha pequena capacidade. Somados os marujos e os passageiros, havia 45 pessoas a bordo. Logo, começou a entrar água em muitos pontos do casco. O comandante avisou que a viagem iria ser penosa e não haveria alimento para todos. • À vista disso, Léry e alguns companheiros se ofereceram para voltar à terra. O sapateiro desistiu no último momento, quando já se encontrava no bote. Os outros eram Pierre Bourdon, Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil, André Lafon e Jacques Le Balleur.
Os cinco homens foram parar em uma praia, onde vieram ao seu encontro vários índios. Resolveram voltar para o forte Coligny. • Villegaignon os recebeu de modo cordial. Doze dias depois, mudou radicalmente de atitude: concluiu que os calvinistas haviam mentido e eram traidores e espiões. Decidiu executá-los por heresia. Como representante do rei Henrique II, podia exigir que eles declarassem publicamente a sua fé.
Formulou um questionário sobre questões doutrinárias e deu-lhes doze horas para responderem por escrito. Tudo de que dispunham era um exemplar das Escrituras; além disso, não eram teólogos, e sim leigos. Para redigir a resposta escolheram Jean du Bourdel, não só o mais velho deles, mas o mais letrado e conhecedor do latim. • Concluída a redação, Bourdel leu-a várias vezes perante os companheiros, interrogando-os sobre cada ponto. Cada um a assinou de próprio punho, indicando que a recebia como sua própria.
O almirante declarou heréticos vários artigos, especialmente os relativos aos sacramentos e aos votos, e decidiu pela morte dos reformados. No dia 8 de fevereiro, mandou trazer do continente os signatários. Pierre Bourdon ficou na aldeia por se achar enfermo. • Lançou-os em uma prisão pequena e escura, onde os condenados oraram e cantaram salmos. Decidiu que fossem estrangulados e lançados no mar, pois o carrasco não tinha preparo para eliminá-los de outro modo.
Chegou a sexta-feira, 9 de fevereiro de 1558. O primeiro a ser chamado foi o redator da Confissão de Fé, Jean du Bourdel. Depois de ser agredido e humilhado por Villegaignon, foi conduzido à rocha escolhida para a execução, entoando salmos e louvores no caminho. Orou antes de ser sufocado e lançado às águas. • Matthieu Verneil foi o próximo. Perguntou porque estava sendo executado. Diante da resposta, observou que oito meses antes o almirante havia confessado publicamente os mesmos pontos doutrinários pelos quais condenara à morte os reformados.
Após orar, pediu a Villegaignon que, em vez de fazê-lo morrer, o tomasse como escravo. O almirante lhe disse que, caso se retratasse, iria pensar no assunto. Verneil se negou a isso e foi executado. • André Lafon deixou-se persuadir por sugestões de auxiliares de Villegaignon, que lhe disseram como poderia salvar a vida. Declarou que não queria ser obstinado em suas idéias calvinistas e se comprometeu a retratar-se quando lhe provassem os seus erros pela Palavra de Deus. Foi poupado e ficou preso na fortaleza, como alfaiate do líder e dos seus homens.
Pierre Bourdon foi conduzido pessoalmente por Villegaignon e alguns auxiliares da casa onde se achava gravemente enfermo até a ilha. Disseram-lhe que iria receber tratamento. Teve o mesmo fim que os dois colegas. • Às 10 horas, Villegaignon reuniu toda a sua gente e lhes dirigiu palavras de cautela contra a “seita dos luteranos”. Em sinal de regozijo pelas execuções, mandou fazer farta distribuição de víveres aos seus servos. Ao voltar à França publicou diversos escritos contra a fé reformada, sendo devidamente refutado.
Jacques Le Balleur conseguiu escapar. Viera ao Brasil na primeira expedição. Além de eloquente e teólogo, era versado em espanhol, latim, grego e hebraico. Surgiu na Capitania de São Vicente em 1559, onde chegou em uma canoa de tamoios. • Pôs-se a pregar as suas convicções. O jesuíta Luiz de Grã desceu de São Paulo de Piratininga (fundada há cinco anos) para desarraigar a heresia. Balleur ia ganhando terreno e dia a dia aumentava o número dos seus ouvintes. O jesuíta não ousou disputar com ele, mas mandou prendê-lo e o enviou para a Bahia, sede do governo de Mem de Sá, onde ficou encarcerado por oito anos.
Condenado à morte, a execução foi suspensa por algum tempo. Finalmente foi levado ao Rio de Janeiro, para ser executado no lugar onde começara a pregar as suas “heresias”. Foi enforcado na época da expulsão dos últimos franceses, pouco após a fundação da cidade do Rio de Janeiro. • No momento da execução, revelando-se inábil o carrasco, foi auxiliado pelo padre José de Anchieta, que julgara haver convertido o calvinista e temia que a demora da execução o fizesse voltar atrás. Esse fato contribuiu para que até hoje Anchieta não tenha sido canonizado.
O Jacques e seus passageiros só chegaram à França em fins de maio de 1558, após quase cinco meses de viagem. • Algumas pessoas que voltaram para a França quatro meses depois contaram ao senhor Du Pont, em Paris, que haviam testemunhado as execuções. Trouxeram consigo não só a Confissão de Fé, mas todo o processo instaurado contra os calvinistas por Villegaignon, entregando-o a Du Pont, de quem mais tarde o obteve Jean de Léry.
Léry, visando a preservação do documento, entregou-o no mesmo ano de 1558 a Jean Crespin, para que o inserisse “no livro dos que em nossos dias foram martirizados na defesa do Evangelho” (História dos Mártires, 1564). Léry diz que alguém mui justamente apelidou Villegaignon o “Caim da América”. • Léry regressou a Genebra, onde concluiu os estudos teológicos e foi ordenado. Foi pastor em Belleville-Sur-Saône, perto de Lyon. Voltou para Genebra em 1562 e, a instâncias de amigos, escreveu a sua obra mais famosa, Viagem à terra do Brasil.
A seguir exerceu o ministério em Nevers e La Charité. Escapou por milagre do massacre de São Bartolomeu e refugiou-se na fortaleza de Sancerre, vindo a escrever uma narrativa do cerco dessa cidade, publicada em 1574. • Perdeu dois manuscritos da sua obra principal (Viagem à terra do Brasil), mas reencontrou o primeiro deles em 1576, publicando-o dois anos depois em La Rochelle.